![]() |
Antonio Gramsci ✆ Asymptotic Way |
Marcus Vinícius Oliveira
Giacomo Marramao afirmou que Gramsci, ao propor suas
reflexões no cárcere, assim como todos os grandes pensadores, foi tomado por um
demônio que conduziu os fios de sua vida [1]. Todavia, o demônio de Gramsci,
para Marramao, é profundamente antissistemático, o que o impede de
ser considerado um clássico no sentido novecentista do termo. Esse
trabalho procura, ao contrário de Marramao, apontar a existência de uma
sistematização teórica nos Cadernos
do cárcere, organizada a partir de uma leitura histórica que identifica uma
transformação morfológica do político, levando Gramsci à construção de sua
teoria da hegemonia.
Para atingir nossos objetivos, empreenderemos uma discussão
que mostra os problemas documentais da obra gramsciana, percebendo em que
medida tais problemas afetam a recepção e a interpretação dos Cadernos. Por fim, estabeleceremos um
diálogo com as recentes produções e reinterpretações de Gramsci promovidas
desde os anos 1990, no intuito de compreender como contribuem para uma
reavaliação do lugar de Gramsci no pensamento político ocidental e, sobretudo,
para a elucidação do sistema teórico dos Cadernos.
Giuseppe Vacca, em recentíssimo estudo, refaz as discussões
em torno do destino dos Cadernos [2].
Para Vacca, amparado em larga documentação epistolar de Gramsci, seus
familiares e membros do PCI, Gramsci jamais expressou o desejo de confiar seus
escritos a Togliatti, chefe do partido na sua ausência e figura importante do
Komitern. Nos planos de Gramsci, os manuscritos deveriam ir para os cuidados de
Piero Sraffa, intelectual italiano radicado na Inglaterra que fora o
interlocutor de Gramsci durante praticamente todo o período carcerário.
Sraffa, além de não pertencer oficialmente ao partido,
estava distante das determinações da Internacional. Nesse sentido, conceder os
manuscritos a Sraffa significava, para Gramsci, a possibilidade de manter seus
escritos intactos em relação aos modelos teóricos soviéticos, que já vinham
sendo combatidos explicitamente desde 1926, pouco antes do encarceramento. A
desconfiança de Gramsci em relação aos membros do PCI, a Togliatti e à URSS não
era apenas teórica. Gramsci suspeitava, desde o aparecimento de uma “estranha
carta” assinada por Ruggero Grieco, de que tanto o PCI quanto a URSS não
estavam interessados em contribuir nas negociações para sua soltura.
Vacca procura analisar esse caso com detalhes no intuito de
delinear um desfecho para o problema. Embora Gramsci tenha morrido acreditando
na possibilidade de sabotagem de sua soltura pelo PCI, Vacca demonstra que a
hipótese da sabotagem não é crível. Não houve sabotagem, uma vez que não houve
tentativas reais e oficiais de libertação nem por parte do PCI nem por parte da
URSS:
Não se pode excluí-lo, mas a reconstrução dos fatos que pudemos realizar sugere uma resposta que, banalmente, pode-se resumir assim: Togliatti não precisava sabotar tentativas de libertação que, na realidade, jamais foram realizadas seriamente pelo único ator que podia empreendê-las, vale dizer, o governo soviético. Empregando uma linguagem mais “familiar”, Mussolini já cuidava de manter Gramsci no cárcere, e sua libertação jamais configurou objeto de interesse estatal soviético [3].
O cuidado de Mussolini com Gramsci demostra o uso político
promovido pelo ditador fascista da figura de seu mais ilustre prisioneiro. Por
ocasião da morte de Gramsci, Mussolini publica um artigo no qual afirma que
este não morrera “à bala, como sucede aos generais, aos diplomatas, aos
hierarcas comunistas da Rússia, quando divergem — mesmo um pouco — de Stalin, e
como aconteceria ao próprio Gramsci se tivesse ido para Moscou” [4].
Por outro lado, há também uma tentativa por parte dos
comunistas de explorar o cadáver. Togliatti inicia a discussão sobre a
possibilidade de transferência das cinzas de Gramsci para a URSS, onde seria
homenageado para a posteridade como chefe do proletariado italiano. O mesmo havia
ocorrido como um membro do PC americano que nutrira divergências com a política
soviética. A transferência de seu corpo para a URSS anunciara uma espécie de
perdão por estas divergências e um processo de apagamento da memória. Na
análise de Vacca, se as cinzas de Gramsci fossem trasladadas, o mesmo iria
ocorrer. No entanto, ainda que a tentativa de Togliatti tenha falhado, ele
proferiu discurso fúnebre qualificando Gramsci como o chefe do proletariado
italiano.
Essa discussão procura demonstrar as ambiguidades e
contradições em que a figura de Gramsci se encontra envolvida desde o momento
de seu desaparecimento. Seus escritos, contra sua vontade, terminam nas mãos de
alguém umbilicalmente ligado à cultura bolchevique, que, desde o momento de seu
falecimento, procura encontrar uma caminho de conciliação entre o pensamento
gramsciano e o soviético.
Essa ambiguidade se deve à tensão que comporta a própria
figura de Togliatti, como aponta Marco Mondaini [5]. Mondaini procura
compreender a construção da via italiana ao socialismo a partir da figura de
Togliatti. O autor aponta que há uma bibliografia cindida em torno da atuação
política de Togliatti, bibliografia que oscila entre sua condenação como
stalinista tout court e sua
aceitação como renovador democrático da tradição comunista ocidental. Para
Mondaini, é preciso compreender a trajetória de Togliatti tendo como fio
condutor uma tensão permanente entre renovação e tradição. Segundo o autor,
Togliatti estabelece uma contradição em suspenso entre a renovação democrática,
profundamente influenciada por Gramsci, e a tradição soviética do
marxismo-leninismo.
Nesse sentido, as primeiras edições dos Cadernos, bem como as primeiras
interpretações e utilizações do pensamento gramsciano, elaboradas sob os
cuidados de Togliatti, foram marcadas por essa justaposição de tradição e
renovação. Deste modo, os escritos de Gramsci estiveram constantemente
cotejados e comparados com os dos pais fundadores do marxismo. Com isso,
Gramsci pôde figurar em uma espécie de linha sucessória que se encadeava entre
Marx, Engels, Lenin e Stalin.
Carlos Nelson Coutinho recupera algumas passagens
epistolares de Togliatti que contribuem para perceber como o pensamento de
Gramsci foi compreendido na primeira edição [6]. Como vimos, logo depois da
morte de Gramsci, seus escritos foram enviados para a URSS, onde se encontravam
os familiares e uma parte dos comunistas no exílio. Togliatti — ou Ercoli, seu
pseudônimo à época — não se encontrava em condições de promover qualquer
tentativa editorial dos Cadernos,
uma vez que, em boa parte do tempo, se encontrava clandestino na Espanha em
meio à guerra civil. Somente quando regressa à Itália em 1944 é que o projeto
de publicação dos Cadernos se
inicia decisivamente.
Ainda que o projeto editorial tenha se iniciado no fim dos
anos 1940, há uma carta de 1941 escrita por Togliatti a Dimitrov cujo assunto é
o destino e a publicação das obras de Gramsci. Na carta, Togliatti informa que
a família de Gramsci nutria o desejo de manter consigo uma fotocópia integral
dos seus escritos. Togliatti nega o pedido, argumentando que não haveria
qualquer necessidade de se manterem dois arquivos referentes ao mesmo material.
Mas o argumento decisivo era que tais materiais só poderiam ser utilizados após
uma criteriosa elaboração, uma vez que “algumas partes, se fossem utilizadas na
forma em que se encontram atualmente, poderiam não ser úteis ao partido” [7].
Portanto, a primeira edição dos escritos gramscianos,
coordenada por Palmiro Togliatti e Felice Platone, obedece às necessidades da
ortodoxia do PCUS e da cultura bolchevique. Diante dessa necessidade, os Cadernos não são publicados
integralmente em uma edição cronológica, mas sim em uma edição temática. Para
Coutinho, tal edição se organiza de modo a conduzir o leitor a uma
interpretação incorreta dos escritos, mostrando que Gramsci havia produzido um
estudo sistemático de todos os temas publicados. Ainda nessa edição temática há
um prefácio interessante que demonstra esse processo de enquadramento de
Gramsci. Sem assinatura, o prefácio procura conduzir o leitor para uma leitura
não heterodoxa de Gramsci:
Estes escritos de Gramsci não poderiam ser compreendidos e avaliados, em seu justo significado, se não se dessem por adquiridos os progressos realizados pela concepção marxista nas primeiras três décadas deste século, graças à atividade teórica e prática de Lenin e Stalin. O marxismo de Gramsci é marxismo-leninismo [8].
Portanto, há uma tentativa de enquadramento de Gramsci nos
moldes do marxismo-leninismo iniciada em suas primeiras interpretações e
edições elaboradas por Togliatti, em um período em que este, em sua ambiguidade
inerente, se encontrava mais próximo da URSS. Deste modo, os intérpretes de
Gramsci haveriam de esperar de 1948 até 1975 para que outra edição fosse
confeccionada.
Esse processo de produção de uma nova edição se inicia,
segundo Coutinho, por volta de 1958. Em janeiro deste ano há em Roma um grande
simpósio organizado pelo Instituto Gramsci. Neste simpósio é levantada a
necessidade de uma nova edição dos escritos gramscianos que não obedecesse aos
critérios temáticos, como os estabelecidos por Togliatti-Platone. Togliatti,
demonstrando mais uma vez sua tensão, contribui para esse processo em seus
últimos anos de vida.
O encarregado de chefiar a grande empreitada foi Valentino
Gerratana. Assim, após anos de estudos e pesquisas é lançada em 1975 a edição
crítica dos Cadernos do cárcere.
Essa edição se organiza ao longo de 2 mil páginas, em 4 volumes, nos quais
estão dispostos todos os 29 Cadernos em
ordem cronológica. Nessa nova disposição é possível observar quase
integralmente a produção gramsciana no cárcere, percebendo como este pensamento
é construído ao longo do tempo.
É necessário apontar que ambas as edições de Gramsci ocorrem
em contextos histórico-políticos específicos no interior da trajetória do PCI e
de seu líder. Como vimos, as primeiras edições datam dos anos 1940, momento em
que o PCI se encontra bastante próximo da URSS, como demostra Mondaini. É
somente a partir do final dos anos 1950 que o PCI, juntamente com Togliatti,
inicia um processo de crítica ao stalinismo, que obviamente se reflete no
trabalho editorial dos Cadernos.
Assim, por ocasião da publicação da edição crítica, Togliatti falecera havia 11
anos, estando Enrico Berlinguer à frente do partido; este último, em 1977,
profere célebre discurso por ocasião dos 60 anos da revolução bolchevique, que
contribuiria decisivamente no delineamento da estratégia democrática dos
comunistas italianos.
![]() |
Facsìmil de una página manuscrita de los Cuadernos de la Cárcel |
A tradição sobre a renovação
Assim, as primeiras interpretações e utilizações do
pensamento de Gramsci são informadas pelas leituras dessas edições disponíveis
de sua obra. Luciano Gruppi, um dos intérpretes mais destacados desse período,
procura analisar o conceito de hegemonia em Gramsci [9]. Logo de início, Gruppi
afirma que o ponto de confluência entre Gramsci e Lenin reside no conceito de
hegemonia. Para demonstrá-lo, Gruppi afirma que Gramsci estabelece uma relação
entre estrutura e superestrutura da qual deriva uma íntima relação entre
política e filosofia. Dessa relação surgiria a criação de um novo Estado e de
um novo poder revolucionário, inaugurando, assim, a ditadura do proletariado.
Gruppi define categoricamente a compreensão gramsciana da hegemonia: “O que
entende Gramsci quando fala de hegemonia, referindo-se a Lenin? Gramsci entende
a ditadura do proletariado” [10].
Na análise de Gruppi, o conceito de hegemonia em Lenin é
derivado do conceito de formação econômica-social de Marx. A partir dessa
ideia, Lenin concebe a hegemonia como etapa necessária de direção da classe
operária no processo revolucionário. Na análise de Gruppi, Lenin é capaz de
romper com o marxismo esquemático e mecanicista da II Internacional, abrindo a
possibilidade de uma leitura não automática da revolução. Em razão disso, Lenin
cria um sujeito revolucionário responsável pela construção da hegemonia do
proletariado: o partido político.
Em Gramsci, a hegemonia constitui o fio condutor dos Cadernos, estando ligada à necessidade
de difusão de uma nova cultura em um processo de reforma intelectual e moral. O
partido atua como o órgão central de universalização dessa nova cultura, sendo
o responsável por moldar a consciência da classe operária. Para tanto, os
intelectuais se configuram como figuras centrais nesse processo. Assim, com a
hegemonia construída, estão também construídas as bases sociais da ditatura do
proletariado. Nos termos de Gruppi:
A hegemonia entra aqui em estreita ligação com a ditadura do proletariado. Pode-se dizer que hegemonia e ditadura do proletariado são sinônimos. Na realidade, se examinarmos bem, veremos uma certa distinção. A hegemonia é a capacidade de direção que fornece à ditadura do proletariado as bases sociais necessárias. É a direção daquele processo que se manifesta posteriormente na forma estatal da ditadura do proletariado [11].
Podemos perceber nitidamente que Gruppi compreende as
reflexões de Gramsci em filiação direta a Lenin. Os conceitos gramscianos de
hegemonia e partido político são praticamente equiparados aos de Lenin. Nesse
sentido, para Gruppi as inovações de Gramsci se situam na relação entre
estrutura e superestrutura. Enquanto Marx teria se preocupado só com as
estruturas, Gramsci se mostraria como complemento necessário, sendo um pensador
das superestruturas.
Para Hugues Portelli, o conceito chave do pensamento
gramsciano não é o de hegemonia, mas sim o de bloco histórico [12]. Para
Portelli, o problema colocado por Gruppi em relação à estrutura e à
superestrutura é um falso problema, uma vez que o bloco histórico constitui uma
unidade dialética e orgânica, que tem por função garantir o domínio das classes
fundamentais.
Embora desloque a centralidade do pensamento gramsciano para
o bloco histórico, conceito ausente em Lenin, Portelli destaca várias
similaridades do conceito de hegemonia entre os dois dirigentes. Gramsci, assim
como Lenin, pensou a hegemonia a partir de uma base classista, abordando a
necessidade de direção da classe operária. Esta direção seria operada pelos
intelectuais, profissionais responsáveis pela cultura e pela conscientização
das classes subalternas. Nesse processo, as bases sociais da nova cultura
universalizada pelos intelectuais precisam ser ampliadas, de modo a amalgamar
uma aliança entre operários e camponeses.
A divergência de Gramsci com Lenin, na perspectiva de
Portelli, reside na relação entre sociedade política e sociedade civil.
Enquanto em Lenin há a primazia da sociedade política sobre a sociedade civil,
em Gramsci ocorre o inverso: há uma ênfase maior na sociedade civil em relação
à sociedade política. Isso ocorreria em razão da formação histórica das
sociedades ocidentais. No Oriente, o Estado é tudo e a sociedade civil é
gelatinosa; no Ocidente, a sociedade civil assume papel preponderante em
relação ao Estado.
A hegemonia, nessa perspectiva, se comporta como a base de
edificação e solidificação do bloco histórico. Os intelectuais orgânicos se
configuram como os funcionários responsáveis por essa edificação, fazendo a
mediação necessária entre estrutura e superestrutura. Nesse sentido, Portelli
procura demonstrar a existência de um bloco histórico orgânico, formado a
partir de uma relação homóloga entre estrutura e superestrutura, que garantiria
a continuidade do domínio de determinada classe fundamental.
A teoria da transição para a sociedade regulada em Gramsci,
nesses termos, se torna a teoria da necessidade da destruição do velho bloco
histórico. Para Portelli, tal destruição só pode ocorrer caso haja uma crise
orgânica desse bloco. Como são os intelectuais os responsáveis pela
organicidade do bloco histórico, uma crise orgânica só poderá ser gerada caso
se produza uma crise orgânica no que Portelli chama de bloco intelectual.
Estando o bloco intelectual em crise orgânica, é possível que outro bloco intelectual
assuma a construção de nova hegemonia, contribuindo para a solidificação de
novo bloco histórico. Nos termos de Portelli:
A destruição do bloco histórico necessita, pois, da desagregação do bloco intelectual, a “armação flexível, mas muito resistente” do bloco histórico. O bloco intelectual — ou bloco ideológico — desenvolve e dirige o sistema hegemônico. A camada social dos intelectuais constitui, em função disso, um dos elementos essenciais do bloco histórico [13].
Por meio dessas reflexões podemos notar que, por mais que
Portelli tenha afirmado que o problema das determinações estruturais ou
superestruturais se configure como um falso problema em Gramsci, suas análises
caminham para uma primazia do superestrutural no pensamento gramsciano. Isso se
evidencia no peso conferido por Portelli à ação dos intelectuais. Em sua
perspectiva, a transformação da sociedade aparece, em última instância, como
crise ideológica ou intelectual da sociedade.
Além disso, é interessante notar a menção ao conceito de
revolução passiva, praticamente ausente nas discussões de Gruppi. A revolução
passiva aparece como uma forma de “tomada do poder pela burguesia com a
neutralização das outras camadas sociais” [14]. A burguesia italiana aparece
como a grande força política condutora das transformações sociais italianas; no
entanto, ela se recusa a exercer a hegemonia, recorrendo ao Piemonte para esta
função dirigente. Como veremos adiante, nas reflexões de Luiz Werneck Vianna
[15] e Alberto Aggio [16] o conceito de revolução passiva em Gramsci está além
de uma simples tomada de poder pela burguesia, sendo uma nova modalidade
morfológica de ingresso no moderno, válida para o continente europeu após a
Restauração, que impossibilita qualquer explosão revolucionária de tipo jacobino.
No Brasil, esse tipo de interpretação ocorre na obra de
Carlos Nelson Coutinho. Apesar de utilizar Gramsci desde os anos 1970 para a
análise da realidade brasileira, Coutinho não publicou um trabalho sistemático
acerca do pensamento de Gramsci até os anos 1990. Em livro de 1999, Coutinho
procura abarcar o pensamento de Gramsci como um todo, situando o pensador sardo
entre os clássicos do marxismo [17]. Para tanto, Coutinho propõe uma relação
dialética entre Marx, Lenin e Gramsci, dentro da qual há um processo tenso
continuidade e renovação.
Observando a trajetória de Gramsci desde seus escritos
juvenis, Coutinho aponta a presença de um traço idealista jamais superado. Esse
traço tem como ponto positivo a superação do fatalismo economicista e
positivista presente no marxismo da Segunda Internacional. Todavia, o contato
com Croce e Gentile impediu Gramsci de promover análises econômicas
consistentes e universais.
O encontro com Lenin, no início dos anos 1920, é fundamental
para a formação de Gramsci. É a partir do contato com o líder revolucionário
russo que Gramsci é capaz de superar sua fase conselhista, aprendendo a
centralidade do partido político na luta pelo socialismo. Além disso, Lenin
possibilita o aprendizado de uma análise dialética, colocando a questão da
hegemonia e da tradutibilidade nacional na ordem do dia das reflexões
gramscianas.
Portanto, com esse aprendizado do marxismo e do leninismo é
que Gramsci inicia sua reflexão carcerária. Para Coutinho, metodologicamente,
os Cadernos se equiparam aoCapital de
Marx. Enquanto Marx passa do abstrato para o concreto a partir da análise da
mercadoria, Gramsci estabelece o mesmo processo partindo da distinção entre
governantes e governados para a análise das relações políticas concretas. O
vínculo com Lenin também não pode ser esquecido na análise do sistema teórico
dos Cadernosproposta por
Coutinho. Os principais conceitos dos escritos gramscianos, nessa perspectiva,
já se encontravam em Lenin, bastando a Gramsci a incumbência de desenvolvê-los
adequadamente.
Nessa vinculação ao marxismo, segundo a análise de Coutinho,
há uma espécie de erro de Gramsci. Enquanto suas formulações acerca da política
são histórico-universais, suas análises econômicas não o são, em razão daquele
traço idealista já mencionado anteriormente. Nesse sentido, Gramsci deve ser
considerado como pensador da política, uma vez que a eleva a um nível
ontológico situado dialeticamente entre a objetividade e a subjetividade.
Apesar de concentrar-se universal e ontologicamente na
política, domínio do superestrutural, Gramsci não abandona o materialismo ou as
determinações econômicas. Para Coutinho, a utilização do conceito de bloco
histórico demonstra esse fato. Portanto, ao propor a determinação econômica em
última instância, Gramsci deve ser equiparado aos clássicos do marxismo, como
Lenin e Lukács. Partindo dos mesmos princípios materialistas de Marx, Lenin e
Lukács, a inovação gramsciana se situa em sua proposição de uma ontologia
materialista da práxis política.
Essa leitura de Coutinho possui alguns problemas de
interpretação, como aponta Alberto Aggio [18]. Para Aggio, Coutinho, ao
procurar estabelecer uma genealogia marxista em Gramsci, ignora seu ambiente
cultural e político, bem como sua heterodoxia. Além disso, Coutinho força para
além do possível a aproximação entre Gramsci e Lukács, apontando a presença de
uma discussão ontológica da política. Para Aggio, não há em Gramsci uma
discussão ontológica, mas sim morfológica. Nos termos de Aggio:
Em nosso entendimento, a questão poderia ser posta nos seguintes termos: embora Gramsci visse o mundo a partir da sua vicissitude orgânica (classe e luta de classe), sua proposta de “leitura” desse mundo não era ontológica e sim morfológica. [...] A temática central dos Quaderni reside precisamente na apreensão das “transformações morfológicas do político”, concepção novíssima vocacionada a capturar a essência de uma transformação “epocal”. Deriva daí a centralidade do conceito de “revolução passiva” em par indissociável com sua “teoria da hegemonia”, dos quais se desdobraram os conceitos de “guerra de movimento” e “guerra de posição” [19].
Abordamos até agora algumas interpretações e usos de Gramsci
na Europa e no Brasil. Tais interpretações do pensamento gramsciano possuem
determinados problemas evidentes. Em primeiro lugar, as reflexões de Gruppi,
Portelli e Coutinho, apesar de díspares, encontram um denominador comum: suas
análises colocam Gramsci em linha sucessória direta com Lenin e a cultura
bolchevique. Com isso, a tradição comunista se impõe sobre a renovação em
Gramsci, de modo que não conseguimos perceber sua heterodoxia, bem como a
superação de alguns pontos essenciais do leninismo. Nessas leituras, Gramsci
não passa de continuador da obra de Lenin: um pensador marxista que se esqueceu
das análises econômicas para dedicar-se às análises da política. Em segundo
lugar, tais análises não apresentam uma adequada historicização. Gramsci, sendo
considerado um clássico, comporta-se como pensador eterno, como aponta Alberto
Aggio na análise de Carlos Nelson Coutinho.
Cabe agora refletir acerca de uma novíssima bibliografia
produzida, entre outros, por autores ligados à Fundação Instituto Gramsci. A
análise dessa bibliografia auxilia na compreensão do sistema teórico dos Cadernos, operando de acordo com uma
metodologia que procura historicizar integralmente vida e obra de Gramsci. De
acordo com Giuseppe Vacca, há uma transformação nos estudos gramscianos
ocorrida após a queda do Muro de Berlim [20]. O clima inaugurado por essa nova
etapa histórica permitiu que os arquivos do Komitern fossem abertos aos
pesquisadores. Com isso, novos estudos vêm sendo produzidos desde o início dos
anos 1990, preenchendo lacunas que antes pareciam insanáveis. Está em curso,
inclusive, uma nova edição (dita “nacional”) dos Cadernos na Itália. Essa edição inclui, além das já conhecidas
notas do cárcere, os cadernos de tradução de Gramsci.
Para compreender adequadamente nosso problema, é preciso que
se tenha uma visão completa e abrangente do pensamento gramsciano, observando-o
também anteriormente ao cárcere. Essa aproximação permite que se amplie a
historicização integral de Gramsci, compreendendo, assim, seu pensamento como
construção guiada por determinadas conjunturas históricas. Com isso, poderemos
notar o afastamento de Gramsci da cultura bolchevique, bem como a construção de
sua autonomia reflexiva.
Silvio Pons contribui decisivamente para tal empreendimento,
analisando as relações do grupo dirigente do PCI, incluindo Gramsci, com o desenvolvimento
político do socialismo na URSS [21]. Pons aponta que desde o desaparecimento de
Lenin, em 1924, se iniciam determinados conflitos entre o PCI e o Komitern.
Nessa conjuntura, Gramsci ainda se coloca como um político bastante próximo dos
preceitos leninistas, tendo convocado em 1925 uma intervenção russa no partido
no intuito de explicitar “a importância da bolchevização e do leninismo na fase
atual de desenvolvimento dos partidos comunistas” [22].
Todavia, o alinhamento de Gramsci com as determinações
soviéticas não é integral. Pons demonstra que Gramsci jamais aceitou a ideia de
estabilização relativa do capitalismo nem tampouco a perspectiva da construção
do socialismo em um só país. Nesse sentido, Gramsci continua como um pensador
que acredita na necessidade a na atualidade da revolução mundial. No entanto,
como aponta Pons, a perspectiva gramsciana da revolução mundial não ocorre a
partir de explosões revolucionárias, como a que se esperou na Alemanha, mas sim
de uma ideia processual da revolução.
Em 1926, pouco antes do encarceramento, as relações de
Gramsci com a URSS se tornam mais tensas. Nesse período de cisão interna no
poder soviético, desencadeada pela oposição Trotski-Stalin, Gramsci redige uma
carta com teor crítico aos rumos da política soviética.
Como demostra detidamente Giuseppe Vacca, por intervenção de
Togliatti, essa carta jamais chegou ao seu destino, de modo que a crítica
gramsciana não foi capaz de impedir o alinhamento do PCI com as determinações
bolcheviques [23].
Na análise de Pons, a carta não questiona o papel da URSS
como ator político dirigente. A crítica de Gramsci se volta ao modo como a URSS
estaria exercendo esse papel, negligenciando a necessidade da construção da hegemonia
e definindo, assim, uma política que elimina de modo esmagador aqueles que se
opõem.
A partir desse momento, as críticas à política soviética se
agravam. Já no início do domínio de Stalin, Gramsci aponta para o predomínio da
coerção sobre o consenso na URSS. Para o pensador italiano, a hipertrofia da
sociedade política em relação a uma sociedade civil frágil, característica
histórica da Rússia, gera um fenômeno de “estadolatria” na União Soviética. Em
1933, já nas notas do cárcere, Gramsci faz críticas diretas a Stalin e ao
Komitern, apontando para o crescente sectarismo existente em suas políticas.
Assim, Pons conclui que:
O sentido último das suas linhas de investigação e raciocínio parece ser que a Rússia pós-revolucionária não era capaz de desempenhar aquele papel de Estado hegemônico que, a seu juízo, fora desempenhado no século anterior pela França pós-revolucionária. O signo da revolução passiva também dominava a evolução da URSS: este parece ser o atormentado ponto de chegada do pensamento de Gramsci sobre a experiência soviética e também o caráter original da sua visão, em comparação com outras visões críticas do tempo, nascidas dentro do comunismo e do socialismo internacional [24].
A partir das reflexões de Silvio Pons podemos compreender as
relações de Gramsci com a cultura bolchevique, percebendo seus pontos de
encontro e suas críticas, notando que há um crescente afastamento de Gramsci
das determinações do Komitern, que se agravam em seu encarceramento e permitem
inovações teóricas de fôlego.
Luiz Werneck Vianna também oferece apontamentos
interessantes para pensar as relações entre Gramsci e a cultura comunista do
ponto de vista teórico, ressaltando sua originalidade em face do modelo
bolchevique de interpretação da realidade. Para Vianna, em sua fase
pré-carcerária Gramsci se encontra atrelado à ideia das “vantagens do atraso”,
proveniente da política oriental. No entanto, mesmo no interior dessa
perspectiva há uma inovação, a qual, na análise de Vianna, se dá por meio da
necessidade, aventada por Gramsci, de análise da questão nacional.
Observando a história e a formação italiana, Gramsci observa
a inexistência de um conflito entre agrários e industriais. Essa inexistência
altera profundamente a história italiana e sua formação estatal, uma vez que se
estrutura um Estado constituído por um compromisso organizado dentro das elites
que controlam as transformações no país. Neste tipo de formação estatal, a
burguesia não possui capacidade suficiente para se converter em ator capaz de
universalizar sua política. Assim, Gramsci percebe que a formação italiana é
algo singular e que as fórmulas revolucionárias esquemáticas não se encaixam
nas formações nacionais. Com isso, Gramsci percebe que o Mezzogiorno é
um problema superestrutural, derivando dessa percepção a necessidade de um
estudo aprofundado dos intelectuais e da cultura.
No entanto, para Werneck Vianna, tais inovações ainda não
conduzem Gramsci para uma defesa do que nos Cadernos seria conceituado como guerra de posição. Nessa
perspectiva, as inovações teóricas de Gramsci ainda serviam para uma revolução
que se configura como a tomada de assalto do Estado, ainda que a partir de uma
erosão lenta do bloco histórico do poder. Assim, Vianna conclui que nesse
momento Gramsci procura atingir o Oriente a partir do Ocidente. Nos termos do
autor:
Tratava-se, pois, de confirmar o deslocamento político e social das “classes intermediárias”, tornando, afinal, possível a exposição do campesinato ao proletariado industrial, momento que deveria anunciar o primado da “preparação técnica” da revolução. Ainda seguindo as metáforas dos Quaderni: devia-se chegar ao Oriente pelo Ocidente, em que o assalto à máquina do Estado fosse precedido de uma lenta erosão do bloco histórico agrário, cujo cimento seriam os intelectuais. Para tanto, era necessária uma orientação que privilegiasse o superestrutural sobre o infraestrutural e que viesse a conceder prioridade estratégica à questão da dominação cultural, confirmando-se o leninismo no mesmo movimento em que se o inovava [25].
Portanto, na sequência das análises de Pons e Werneck Vianna
torna-se possível obter um panorama mais claro das relações do pensamento
gramsciano com a cultura bolchevique, compreendendo que, ainda antes do
cárcere, há uma relação tensa entre ambos. Por menos que nesse período Gramsci
tenha ultrapassado os limites do bolchevismo, percebemos que já existem
tentativas inovadoras nos limites desta cultura política. Tais inovações serão
decisivas para a construção do sistema teórico exposto nos Cadernos.
O encarceramento de Gramsci ocorre algumas semanas depois da
tentativa de envio da carta crítica aos rumos da URSS. No cárcere, Gramsci
revela em suas cartas um plano intelectual “desinteressado” que contemplaria
análises sobre a formação italiana e a influência dos intelectuais. Esse plano
demonstra a preocupação de Gramsci, impedido de atuação prática, em prosseguir
em suas intuições teóricas construídas ao longo da segunda metade dos anos
1920.
Para Giuseppe Vacca, o contexto histórico em que se desenvolve
a teoria da hegemonia é o da crise do Estado moderno [26]. Na análise de Vacca,
Gramsci percebe que o Estado-potência, tão presente nas determinações da
Primeira Guerra Mundial, não mais se encaixa na conjuntura dos anos 1930. Nesse
sentido, as formações estatais estariam se alinhando a partir de uma
perspectiva supranacional, em consonância com os movimentos da economia
mundial. Assim, acompanhando a dinâmica desses processos históricos, Gramsci
percebe uma transformação morfológica do político, apontando para o caráter
original dos tempos em que vive.
Essa transformação morfológica do político se evidencia nas
notas de Gramsci acerca doRisorgimento, nas quais lança as bases para o
aprofundamento do conceito de revolução passiva. Analisando a história italiana,
Gramsci pretende observar sua forma de ingresso na modernidade [27]. Nesse
processo, demonstra que há diversas formas de ingresso na modernidade burguesa,
pondo assim em questão o paradigma revolucionário francês.
Historicamente, o paradigma de revolução de tipo explosivo,
jacobino, não pode repetir-se em função de uma transformação morfológica do
político. Para Gramsci, a revolução francesa, em seu momento de exportação para
a Europa, gera reações não revolucionárias, o que se evidencia com a Restauração
de 1815 [28]. A Restauração, para Gramsci, mostra a tentativa das classes
tradicionais de impedir o desenvolvimento do jacobinismo em seus respectivos
países. Deste modo, tais classes procuram conduzir a seu modo o processo de
ingresso da modernidade, evitando convulsão revolucionária. Diante disso,
Gramsci propõe que as transformações ocorridas na Europa a partir desse momento
obedecem à lógica do transformismo. Isso significa dizer que as rupturas
bruscas com a ordem estabelecida estão canceladas, de modo que as
transformações históricas ocorreriam de modo molecular.
Como aponta Werneck Vianna, essas transformações moleculares
verificadas por Gramsci são mais ou menos avançadas ou atrasadas, dependendo da
atuação de determinados atores políticos. Vianna estabelece para essa análise
uma díade entre a lógica do ator e a dos fatos. O ator revolucionário, na
perspectiva de Vianna, representa a antítese das classes tradicionais. O
caráter mais ou menos “ativo” da revolução passiva depende, em grande medida,
da capacidade de atuação desse ator nesse processo histórico.
Nesse momento, Gramsci retoma de modo brilhante o pensamento
de Maquiavel, operando a atualização da ideia de fortuna e virtù,
no intuito de contribuir para a formação de um ator coletivo que possa conduzir
a revolução passiva italiana. Esse ator, na análise de Francesca Izzo, seria
materializado na figura de um centauro, animal mitológico que mistura em si as
características da força e da inteligência, que remetem também às clássicas
metáforas maquiavelianas da raposa e do leão [29].
No caso específico italiano, Gramsci demonstra o caráter
recessivo da revolução passiva. O ator da antítese, o Partido da Ação, não
consegue se credenciar como ator desse processo em virtude de seu jacobinismo.
Para Gramsci, a proposta do jacobinismo na Itália é irreal, uma vez que esta
está condicionada à emergência de uma burguesia forte, totalmente ausente no
país. Ainda por cima, uma atuação jacobina estaria interditada pela Restauração
de 1815. Diante disso, Gramsci procura demonstrar que faltou aos dirigentes do
Partido da Ação uma política consciente e realista, adequada à ideia de virtù.
Deste modo, os membros do Partido da Ação se comportaram como “apóstolos
iluminados”, negligenciando a conjuntura política em que se encontravam.
Ao contrário do Partido da Ação, os moderados conseguem
credenciar-se como condutores da revolução passiva italiana. Isso ocorre, na
análise de Gramsci, em razão da existência da uma direção forte e homogênea no
partido. Essa direção forte se organiza em termos culturais, uma vez que os
moderados conseguiram forjar seus próprios intelectuais, que contribuíram
decisivamente para a formação do consenso da população italiana. Nesse sentido,
Gramsci conclui que os moderados construíram sua hegemonia anteriormente à
chegada ao poder, estabelecendo sua condução do transformismo italiano.
A revolução passiva, apesar de extraída da análise da
formação histórica italiana, é um conceito de grande abrangência, válido para a
percepção das transformações históricas como um todo, fazendo com que Gramsci
se torne um teórico das mudanças sociais nas sociedades complexas, como atestam
Alberto Aggio e Luiz Sérgio Henriques.
Nesse sentido, a formulação desse conceito vincula-se a uma
transformação epocal das mudanças históricas. Werneck Vianna nota essa
característica epocal, analisando o diálogo de Gramsci com o “Prefácio” da Crítica
à economia política de Marx. Na concepção gramsciana do “Prefácio” de
1859, há um equacionamento da relação dialética entre infraestrutura e
superestrutura. Dependendo das sociedades – como é o caso europeu e, sobretudo,
italiano –, as superestruturas podem jogar um papel decisivo, fazendo com que a
sociedade política ou Estado se torne o condutor da sociedade civil. Caso oposto
ao europeu ocorre nos Estados Unidos: segundo as notas gramscianas sobre o
americanismo, a sociedade americana comporta-se de modo inverso à europeia, de
modo que a sociedade civil aparece com mais força, moldando, a partir da
estrutura, as superestruturas.
A partir de tal concepção, Gramsci procura responder aos
problemas impostos pelo próprio tempo histórico, que procuramos apontar com a
leitura de Vacca da crise do Estado moderno. Ao compreender as dimensões dessa
crise e as características originais de seu tempo, Gramsci mostra a necessidade
da construção de uma nova política, uma vez que haveria uma nova formação
estatal advinda do transformismo inaugurado pela revolução passiva. Essa nova
formação estatal decorre da emergência das massas na política, o que faz com
que a legitimidade do poder se descoloque de seu aspecto coercitivo para a
necessidade da formulação do consenso, como afirma Alberto Aggio [30].
Portanto, recorrendo a tais análises é que Gramsci começa a
construir sua teoria da hegemonia. Analisando a nova morfologia da política e
percebendo a presença das transformações moleculares, Gramsci compreende que o
tempo da “guerra de movimento” está encerrado, de modo que as transformações
atuais são orientadas segundo as exigências da “guerra de posições”.
A posição de Gramsci sobre a necessidade da hegemonia na
política moderna se torna evidente com a análise dos rumos tomados pela URSS em
suas notas do cárcere. Essas reflexões o colocaram em um horizonte de superação
clara da cultura bolchevique, como podemos depreender da comparação entre o
conceito de hegemonia de Lenin e o de Gramsci, empreendida por Anna Di Biagio
[31].
Di Biagio revela que Lenin se utiliza, desde 1905, do
conceito de hegemonia como designação de direção política e capacidade de
influência. O conceito leninista surge da ideia da impossibilidade de uma
consciência socialista autônoma por parte dos trabalhadores, sobretudo os do
campo. Diante disso, seria necessário que uma consciência dirigente externa os
dirigisse rumo ao conhecimento de seus reais interesses, elevando assim o
campesinato à consciência revolucionária.
Após a revolução, o conceito de hegemonia é praticamente
abandonado na URSS. Em 1919, hegemonia se torna predomínio do proletariado.
Para Di Biago, essa inflexão indica que a ideia de hegemonia, em Lenin, servia
somente para o período pré-revolucionário, uma vez que, após a revolução, a
tarefa hegemônica do proletariado estaria a cargo do Estado e do partido. Isso
se torna mais verdadeiro à medida que se nota que o conceito de hegemonia
leninista permanece como ponto central nas determinações da Internacional
Comunista, sendo válido, portanto, para os países que ainda não sofreram seus
processos revolucionários.
Gramsci compreende a insuficiência do conceito leninista de
hegemonia do proletariado, descrevendo seus impactos na URSS. Em sua análise, o
abandono da hegemonia após a revolução gera a hipertrofia do Estado sobre a
sociedade civil, dando a origem a uma adoração do Estado e a um governo
autoritário. Assim, para Gramsci a hegemonia deve ser obtida antes da ida ao
poder, de modo que o consenso da sociedade se torna legitimador da nova
política.
Obviamente, em Gramsci, a ida ao poder não ocorre a partir
de uma revolução de tipo clássico, uma vez que o terreno da hegemonia é
exatamente o das transformações moleculares e da “guerra de posição”. Nos
termos gramscianos, hegemonia e democracia formam um par indissolúvel, como
demonstra Vacca [32]. A democracia, no modelo de Gramsci, é o sistema político
no qual os governados podem passar, molecularmente, à condição de governantes.
Deste modo, é a partir de uma política democrática que um novo projeto pode
alcançar a hegemonia em uma dada sociedade. Consequentemente, pelo fato de a
hegemonia ter sido atingida antes da chegada ao governo e de requerer o
consenso ativo da sociedade, não há autoritarismo por parte do Estado.
A ideia de democracia em Gramsci não é instrumental, não se
configura como fase de transição a ser eliminada em um futuro
pós-revolucionário, como reminiscência do mundo burguês. Todavia, Vacca
salienta que Gramsci não se conforma com o delineamento da democracia
parlamentar representativa. Não deseja destruí-la, mas sim reformá-la
radicalmente rumo a uma perspectiva ampliada e supranacional, em consonância
com o nexo nacional-internacional.
Para completar a teoria da hegemonia, falta apenas
considerar seus aspectos econômicos, relativos à tradutibilidade do
americanismo. Gramsci inicia a abordagem do americanismo por um ponto
interessante [33]. A análise não parte de um fato econômico, mas de um fator
demográfico. Para Gramsci, o americanismo, em sua forma mais completa, exige um
determinado tipo de demografia existente nos Estados Unidos em razão de sua
formação histórica. Esse tipo demográfico é chamado por Gramsci de demografia
racional. Nesse modelo, não há classes sem função no mundo produtivo, de modo
que são eliminadas as classes parasitárias. Em decorrência disso, a
implementação da racionalização produtiva se deu facilmente nos Estados Unidos.
Esse processo de racionalização produtiva termina por gerar
um novo tipo de homem e um novo tipo de Estado. O liberalismo introduzido pelo
americanismo traz consigo a proposta da livre iniciativa, fazendo com que haja
um fortalecimento evidente da sociedade civil. Deste modo, ao existir uma sociedade
civil forte e organizada, o Estado não pode se configurar unicamente como um
aparato de coerção, organizando-se, ao contrário, em uma estrutura de baixo
para cima.
Seguindo esse raciocínio, pode-se elucidar melhor o tema dos
intelectuais e da mediação entre sociedade civil e sociedade política. Gramsci
divide as superestruturas em sociedade civil, esfera correspondente aos
organismos privados, e sociedade política, esfera que diz respeito sobretudo ao
Estado. O partido político é o responsável por estabelecer a mediação entre a
sociedade civil e a sociedade política. Na perspectiva americanista, é
exatamente a sociedade civil que constrói o Estado, que atua como responsável
por universalizar os princípios ético-morais e intelectuais da sociedade civil.
É precisamente por essas razões que Gramsci afirma que a hegemonia nasce no
chão da fábrica.
Aqui, no entanto, é preciso estabelecer uma ressalva. Vacca
aponta que há uma distinção essencial em Gramsci entre industrialismo e
americanismo [34]. Gramsci, de fato, percebe elementos positivos no liberalismo
quanto ao fortalecimento da sociedade civil e à possibilidade de construção de
uma nova vida estatal. Todavia, encontra-se empenhado na superação do
capitalismo. Mesmo que suas propostas estejam distantes da cultura bolchevique,
é ainda um homem da revolução mundial. Nessa perspectiva, os pontos positivos
do americanismo auxiliam em sua superação, rumo à sociedade regulada.
A Itália, entretanto, está longe de assimilar-se ao caso dos
Estados Unidos. A demografia italiana não obedece a critérios racionais, de
modo que há classes fora do mundo produtivo, comportando-se de modo
parasitário. Gramsci cita um ditado popular que ilustra perfeitamente a
situação italiana: “um cavalo caga e cem pássaros jantam”. Isso impede que a
ordem competitiva do americanismo, extremamente racionalizada pelo fordismo, se
implemente de modo integral.
Diante disso, o americanismo, fenômeno de vocação
cosmopolita, é traduzido nas condições históricas de cada localidade em que se
insere. Nesse sentido, é filtrado também pelo processo da revolução passiva. Na
Itália, não é administrado por suas classes fundamentais, uma vez que não há
uma burguesia forte capaz de conduzi-lo, de modo que as classes parasitárias,
ligadas umbilicalmente ao Estado, assumem esse papel, conferindo um caráter
recessivo ao americanismo. Nesses termos, dirigir a revolução passiva na Itália
significa também credenciar-se como ator para a condução do americanismo.
É possível, a partir destas reflexões, perceber a amplitude
do pensamento do nosso autor, que consegue abarcar as várias esferas política,
econômica e cultural da sociedade, estabelecendo entre elas vínculos
interdependentes e indissociáveis, sem, contudo, incorrer em uma dialética
determinista e anti-histórica. E aqui temos delineado o sistema teórico dos Cadernos. Gramsci, ao observar a
história italiana e europeia desde o século XIX, percebe o caráter epocal das
reflexões de Marx, colocando em cheque o paradigma explosivo da revolução
francesa. Com isso, é capaz de estabelecer uma teoria que comporta novas
modalidades de ingresso no mundo moderno, afirmando a transformação morfológica
do político decorrente desse novo contexto. Assim, se há novas formas do
político, é preciso que se busquem novas formas do fazer político. E Gramsci as
encontra precisamente na teoria da hegemonia. No tempo da revolução passiva, a
guerra de movimento cede lugar à guerra de posições. É preciso buscar o
consenso ativo da sociedade civil, formando atores dirigentes da sociedade, responsáveis
pela condução, mais ou menos acelerada, das transformações moleculares.
Observando a construção desse sistema teórico, percebemos o
nítido distanciamento de Gramsci da cultura bolchevique, sobretudo de Lenin. Em
diálogo com essa nova bibliografia, foi possível construir um Gramsci além do
bolchevismo, um autor no qual a inovação e a heterodoxia se encontram livres e
autônomas de qualquer tipo de dogmatismo e a inovação se sobrepõe à tradição.
Notas
[1] MARRAMAO, Giacomo. O
demônio anti-sistemático. Presença, Rio de Janeiro, n. 11, 1988.
[2] VACCA, Giuseppe. Vida e pensamento de Antonio Gramsci (1926-1937). Brasília/Rio de
Janeiro: Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2012.
[3] Id., p. 494.
[4] Id., p. 462.
[5] MONDAINI, Marco. Do stalinismo à democracia: Palmiro Togliatti e a construção da via
italiana ao socialismo. Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Astrojildo
Pereira/Contraponto, 2011.
[6] COUTINHO, Carlos Nelson. Introdução. In: GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V. 1: Introdução ao estudo da filosofia. A
filosofia de Benedetto Croce. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2004.
[7] Id., p. 22.
[8] Id., p. 25-6.
[9] GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal,
1980.
[10] Id., p. 4-5.
[11] Id., p. 58.
[12] PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco histórico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
[13] Id., p. 112.
[14] Id., p. 70.
[15] VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva – iberismo e americanismo no Brasil. Rio de
Janeiro: Revan, 2004.
[16] AGGIO, Alberto; HENRIQUES, Luiz Sérgio; VACCA, Giuseppe
(Orgs.). Gramsci no seu tempo.
Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2010.
[17] COUTINHO, Carlos Nelson Gramsci: Um estudo sobre seu pensamento político.
2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
[18] AGGIO, Alberto. Pensamento
político e estratégias democráticas na América Latina. Franca: Faculdade de
História, Direito e Serviço Social de Franca, 1999. Tese de Livre-Docência.
[19] Id., p. 105.
[20] VACCA, Giuseppe. Os
estudos gramscianos depois de 1989. Site Gramsci e o Brasil, 2008.
Acesso em: 30 jun. 2014.
[21] AGGIO, Alberto; HENRIQUES, Luiz Sérgio; VACCA, Giuseppe
(Orgs.). Gramsci no seu tempo,
cit.
[22] Id., p. 153.
[23] VACCA, Giuseppe. Vida
e pensamento de Antonio Gramsci (1926-1937), cit.
[24] AGGIO, Alberto; HENRIQUES, Luiz Sérgio; VACCA, Giuseppe
(Orgs.). Gramsci no seu tempo,
cit., p. 172.
[25] VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva, cit., p. 68.
[26] VACCA, Giuseppe. Pensar o mundo novo – rumo à democracia do século XXI. São Paulo:
Ática, 1996.
[27] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V. 4: Temas de cultura, Ação Católica,
americanismo e fordismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
[28] _____. Maquiavel,
a política e o Estado moderno. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978.
[29] AGGIO, Alberto; HENRIQUES, Luiz Sérgio; VACCA, Giuseppe
(Orgs.). Gramsci no seu tempo,
cit.
[30] AGGIO, Alberto. A
questão democrática em Gramsci. Site Gramsci e o Brasil, 2013.
Acesso em: 7 abr. 2014.
[31] AGGIO, Alberto; HENRIQUES, Luiz Sérgio; VACCA, Giuseppe
(Orgs.). Gramsci no seu tempo, cit.
[32] VACCA, Giuseppe. Pensar o mundo novo... , cit.
[33] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, v. 4, cit.
[34] VACCA, Giuseppe. Pensar o mundo novo... , cit.
Referências bibliográficas
AGGIO, Alberto; HENRIQUES, Luiz Sérgio; VACCA, Giuseppe
(Orgs.). Gramsci no seu tempo. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira,
2010.
AGGIO, Alberto. Pensamento político e estratégias
democráticas na América Latina. Franca: Faculdade de História, Direito e
Serviço Social de Franca, 1999. Tese de Livre-Docência.
_____. A questão
democrática em Gramsci. Site Gramsci e o Brasil, 2013. Acesso em: 7
abr. 2014
COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. Encontros
com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n. 9. 1979.
_____. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político.
2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
_____. Introdução. In: GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V. 1: Introdução ao
estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. 3. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004.
GARCIA, Marco Aurélio (Org.). As esquerdas e a
democracia. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos
do cárcere. V. 4: Temas de cultura, Ação Católica, americanismo e fordismo.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
_____. Cadernos
do cárcere. 6. ed. V. 5: O Risorgimento. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011.
_____. Maquiavel, a política e o Estado moderno. 3. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. 2.
ed. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
MARRAMAO, Giacomo. O demônio anti-sistemático. Presença,
Rio de Janeiro, n. 11, 1988.
MONDAINI, Marco. Do stalinismo à democracia: Palmiro
Togliatti e a construção da via italiana ao socialismo. Brasília/Rio de
Janeiro: Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2011.
PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco histórico. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1977.
SECCO, Lincoln. Gramsci e o Brasil: recepção e difusão
de suas idéias. São Paulo: Cortez, 2002.
_____. Pensar o mundo novo – rumo à democracia do
século XXI. São Paulo: Ática, 1996.
VACCA, Giuseppe. Os estudos
gramscianos depois de 1989. Site Gramsci e o Brasil, 2008. Acesso: em
30 jun. 2014.
_____. Vida e
pensamento de Antonio Gramsci (1926-1937). Brasília/Rio de Janeiro:
Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2012.
VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva – iberismo e
americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
Marcus Vinícius
Furtado da Silva Oliveira é graduado em História pela Universidade Federal
do Triângulo Mineiro, mestrando em História e Cultura Política pela
Unesp/Franca e bolsista Capes.
![]() |
http://www.acessa.com/ |