◆ “A verdade
é que as chances de sucesso de uma revolução socialista não têm outra medida
que o próprio sucesso” — Antonio
Gramsci (1891-1937), referindo-se à Revolução de Outubro
Robert Bösch / No mais tardar com o desaparecimento da URSS
da cena política mundial, também o que se costumava chamar de “teoria marxista”
perdeu de vez toda e qualquer relevância social. Até as variantes mais
esclarecidas do marxismo tinham a União Soviética senão como socialista, ao
menos como uma formação social “pós” ou “não-capitalista”. Sua ruína
catastrófica selou também o veredito sobre a esquerda até aqui existente e seu
conceito de teoria. Nesse contexto, não se pode deixar de admirar o ainda
relativamente amplo interesse por Antonio Gramsci. Não é fácil compreender
porque um pensador que viu como sua tarefa “traduzir para o italiano” as
experiências da Revolução de Outubro (Zamis 1980, p. 327), e para quem
Lenin era “o maior teórico moderno” do marxismo (Perspektiven 1988, p. 6), não é tratado como um cachorro
morto.
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De fato, o renascimento desse revolucionário fracassado do tempo da III
Internacional causa surpresa, se temos em mente que não apenas a esquerda, mas
também a direita teórica descobriu para si esse “clássico marxista”. Se Gramsci
já era popular desde a década de 70 em um determinado espectro da esquerda
acadêmica, que se agrupava na Alemanha Ocidental sobretudo em torno da
revista Argument, já em 1977 o
teórico da nouvelle droit francesa, Alain de Benoist, escreveu um
livro em que adaptava a seu modo o pensamento de Gramsci.
E enquanto a
editora Argument no começo
da década de 90 começava a editar a primeira tradução completa para o alemão de
seus “Cadernos do Cárcere”, que foram escritos durante sua prisão nas masmorras
fascistas, a adaptação de Gramsci por Benoist se integrava ao pensamento da
“Nova Direita” alemã. Em 1985 foi editada a tradução alemã do livro de Benoist
de título Revolução Cultural de
Direita: Gramsci e a Nouvelle Droit e a revista mensal Junge Freiheit (Liberdade Jovem),
com uma tiragem hoje em dia de mais de 35.000 exemplares, exigia em referencia
direta a Gramsci que a direita deveria recuperar a “hegemonia social” que havia
perdido para a esquerda.
Como se pode explicar as apropriações aparentemente tão
contraditórias de um teórico de quem a revista
socialista Perspektiven em 1988 asseverou ser na mesma medida
“perigoso” para a “ordem dominante” como para a “estupidez de esquerda” (Perpektiven 1988, p.3); e a quem o
marxista inglês Stuart Hall (1989, p.56) descreveu como sendo expressão da
“renovação do marxismo”? Será a reivindicação de Gramsci tanto pela direita
quanto pela esquerda um sinal de que seu princípio teórico tornou-se obsoleto?
Não poderei dar uma resposta completa a essa pergunta no
presente texto. Entretanto, gostaria de tentar, com um olhar mais minucioso
sobre os teoremas centrais de Gramsci e o contexto histórico no qual ele os
formulou, indicar em que medida há uma lógica comum às interpretações
aparentemente contraditórias desses teoremas.
1. O esquema Base-Superestrutura: Fundamento do pensamento de Gramsci
O ponto de partida do pensamento teórico de Gramsci é sem
dúvida a Revolução de Outubro. É fácil compreender que a queda do regime
czarista em meio à carnificina da Primeira Guerra Mundial tenha sido sentida
por ele como a revelação “de uma nova consciência moral”, como o “começo de uma
nova ordem” (Gramsci, apud Buci-Glucksmann
1981, p.119).
A particularidade da Revolução de Outubro para Gramsci é que
ela teria sido uma “revolução contra O Capital” de Karl Marx, uma vez
que os bolcheviques teriam mostrado que “é possível realizar o socialismo a
qualquer momento” (Gramsci, apud Zamis
1980, p.325). Essas “afirmações peculiares”, como as denominou Guido Zamis,
editor de Gramsci, não se devem ao fato de Gramsci ter embarcado em uma
“corrupção interpretativa do marxismo” (idem, p.326), mas, ao contrário, elas
desenvolvem exemplarmente o ponto central de um entendimento do marxismo que
julga a realidade exclusivamente a partir de dentro do horizonte do conceito de
luta de classes:
“Os acontecimentos… dependem da vontade de muitos, que se expressa no fazer ou no deixar de fazer determinadas coisas e nas posturas mentais correspondentes, e eles dependem da consciência dessa vontade, que apenas uma minoria tem, e do modo como essa minoria direciona essa vontade a um fim comum, depois dessa vontade de muitos ter sido unificada no campo da autoridade estatal” (Gramsci 1980, p.17). O marxismo para ele é uma “teoria da ação”, que deve culminar na “fundação de um novo Estado”. (Perspektiven 1988, p.53).
Essa atitude voluntarista inicialmente parece diferenciar
Gramsci da ortodoxia marxista, como verifica Annegret Kramer: “contra o
‘finalismo fatalista’ de uma teoria da história que faz do proletariado um
apêndice ou, na melhor das hipóteses, um órgão de execução da ‘racionalidade da
história’, Gramsci destaca portanto o significado da iniciativa política no
processo do desenvolvimento histórico” (Kramer 1975, p. 75). Entretanto, uma concordância
expressa com Lenin na polêmica contra os “renegados” da II Internacional indica
que Gramsci de modo algum conseguiu se livrar do sistema de categorias do
marxismo contemporâneo.[i]Ele
apenas dá ênfase ao elemento voluntarista, que está vinculado à contraposição
exterior e dicotômica de “base objetiva” (“as relações de produção”) e de
“fator subjetivo” (“a classe trabalhadora”), que desde sempre foi o fundamento
secreto para a divisão da esquerda em correntes “objetivistas” e
“subjetivistas”.[ii]
Gramsci interpretou o “economicismo” como uma expressão
efetiva do “finalismo fatalista”, fazendo-se necessário ser ele combatido “não
apenas na teoria historiográfica, mas também e especialmente na teoria e práxis
políticas” (Gramsci, apud Buci-Glucksmann
1981, p. 241). Em uma anotação dos Cadernos
do Cárcere sobre a relação “base-superestrutura” lê-se o seguinte: “a
afirmação… de que qualquer movimento na política e na ideologia deva ser
representado e explicado como expressão imediata da base precisa ser combatida…
como infantilismo primitivo…” (Gramsci 1980, p. 219).
Como comprovação, ele cita a carta de Friedrich Engels para
Joseph Bloch de 21.9.1890, em que Engels escreve:
“de acordo com a concepção materialista da história, o fator em última instância determinante da história é a produção e reprodução da vida real (…) A situação econômica é a base, mas os diferentes momentos da superestrutura… também exercem sua influência sobre o curso das lutas históricas…” (Engels, apud Perspectiven 1988, p.68).
Para Gramsci, segue-se daí a “unidade dialética de base e
superestrutura” em um processo de “interação”.[iii] No
entanto, já o próprio conceito de “interação” deixa claro que nessa formulação
da relação entre “base e superestrutura” a estrutura dicotômica de conhecimento
da filosofia ocidental não é de modo algum superada. Como Hegel o expressou: “a
insuficiência que reside na aplicação da relação de interação consiste, visto
mais de perto, no fato de que esta relação, em vez de poder ser considerada
como equivalente para o conceito, quer ela mesma ser conceituada, e isso
acontece pelo fato de que ambos os lados não se deixam reconhecer como algo
dado imediatamente, mas ao contrário … como momentos de um terceiro, mais
elevado, o qual então este sim é o conceito” (Hegel 1830, p.302).
A essa ausência de um conceito geral do relacionamento
social está vinculado o fato de a ênfase da análise teórica só poder ser posta
ou na “base” (i.e., no “fator objetivo”) ou na “superestrutura” (i.e., no
“fator subjetivo”), o que mesmo no caso de um só teórico varia de acordo com a
situação histórica. Por detrás das acusações recíprocas de objetivismo (também
chamado de “economicismo”) e subjetivismo (ou “voluntarismo”), geralmente
desaparece o fato de que se trata apenas de uma identidade negativa.
A “superestrutura” político-cultural é vista por Gramsci
como consistindo em algo diferente da “base”, entendida como “movimento
econômico”, e por isso ele precisa deixar os dois campos “agirem” um sobre o
outro de modo mecânico (o que ele então entende como “dialética”). “Dialética”
é em Gramsci (como também ao menos no Engels tardio) não a unidade processante
de momentos contraditórios, mas somente um nexo causal bipolar dinamizado. A
subjacente forma de relação burguesa é um pressuposto inconsciente dessa
teoria, e as esferas da “política”, “economia”, etc., por essa forma
constituídas, são apresentadas como relacionando-se umas às outras apenas
exteriormente.
Com esse esquema base-superestrutura como pano de fundo,
Gramsci pode interpretar a Revolução de Outubro no sentido de que “as condições
políticas de uma transformação guiada por marxistas não precisam
necessariamente corresponder aos pressupostos de um sistema capitalista caduco”
(Hofmann 1984, p.43). Coerentemente, ele acreditava reconhecer na URSS o
paradoxo de uma “superestrutura política” comunista, cuja “base econômica”
ainda era capitalista. O conceito de interação surge como solução do problema
das “relações entre a base e a superestrutura”, porque ele permite a Gramsci
dar à “superestrutura” “uma realidade efetiva e objetiva” (apud Perpektiven 1988,
p.7), quer dizer, definir as relações sociais de produção, reduzidas a
“condições econômicas”, como a causa “em última instância” determinante; e além
disso, tal conceito permite a Gramsci, enquanto “filósofo prático”, intervir na
política, interpretada como luta imediata de interesses das classes: “1. O
econômico é em última instância determinante; 2. A política não pode desistir
de ter o primado sobre a economia: ela está ‘no posto de comando’”.
(Gramsci, apud Bucci-Glucksmann
1981, p.276). Ou, nas palavras de Lenin: “a política não pode deixar de ter o
primado sobre a economia. Pensar de outro modo significa esquecer o ABC do
marxismo” (apud Bucci-Glucksmann
1981, p.28).[iv] Para
entender todas as implicações dessa visão, é necessário analisar mais de perto
o conceito de ideologia de Gramsci.
2. O Estado integral e a luta pela hegemonia
Também o conceito gramsciano de ideologia é determinado pelo
“primado da luta de classes”: “a frase do prefácio à Contribuição à crítica da economia política, segundo a qual os
seres humanos conquistam a consciência dos conflitos estruturais na esfera da
ideologia, precisa ser encarada como uma observação de valor cognitivo e não de
valor puramente psicológico e moral” (Gramsci, apud Albers 1983, p.138). Na introdução a esse texto, Marx
escreve que “em determinado ponto do desenvolvimento, as forças produtivas
materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção
existentes” (apud Schreiber 1982,
p.79). Para Gramsci, no entanto, tal contradição não é o antagonismo entre o
conteúdo material e a forma de relacionamento social, o valor, mas,
classicamente marxista, a contradição entre trabalho assalariado e capital.
Como ele não considera o proletariado como uma máscara da mercadoria-trabalho,
como uma categoria imanente ao capitalismo e por ele constituída, a
manifestação superficial da oposição de interesses das classes necessariamente
se apresenta a ele como ponto de referência que transcende o capitalismo.
Gramsci não situa a contradição entre capital e trabalho
apenas na esfera da produção, mas, além disso, referindo-se a Marx, define a
política, compreendida enquanto “superestrutura político-cultural”, como esfera
da luta de classes pelas “formas ideológicas, nas quais o homem se torna
consciente desse conflito e realiza o combate” (Marx, apud Schreiber 1982). Conceitos como “democracia” ou “nação”
se apresentam a ele como sem “significado totalmente fixo”, pelos quais, em
função disso, é possível desenvolver uma “luta estratégica” (Hall 1984, p.116).[v] Nem a “democracia” é conceituada
como a forma política adequada ao capitalismo desenvolvido, nem a “nação” como
ponto de referência identificatória do indivíduo burguês, mas, coerentemente
com as ilusões mais belas da vontade livre e abstrata, esses conceitos são
tomados como “neutros” estruturalmente e consequentemente instrumentalizáveis
para fins emancipatórios (e também para fins reacionários): “trata-se de
retirar um significado do conceito (‘democracia’) do campo da consciência
pública e implantar esse significado na lógica de um discurso político
diferente” (idem, p.117). Desse modo, tornar-se-ia “possível dar ao conceito de
nação um significado e uma conotação progressistas” (idem, p. 118).
De acordo com essa perspectiva, o decisivo é quem possui o
poder de definição na sociedade, para definir “o significado e a conotação” de
determinados conceitos e categorias da “superestrutura”. As ideologias são para
Gramsci “visões de mundo”, cuja coerência depende de como elas conseguem
“modificar e transformar a consciência cotidiana” (Hall 1989, p.80). A
consciência cotidiana ou o senso comum é o “terreno”, “sobre o qual surgem
conceitos e categorias, sobre o qual se forma concretamente a consciência
prática das massas” (idem). Em função disso, esse “terreno” é “um campo
estratégico da luta de classes” (Buci-Glucksmann 1981, p.67); as ideologias são
“construções práticas, instrumentos de condução política. (…) Para a filosofia
da praxis, as ideologias são tudo menos que arbitrárias, elas são fatos
historicamente reais, que, em função de sua natureza, devem ser combatidas e
expostas enquanto instrumentos de dominação, e isso não por motivos morais mas
por motivos práticos: para tornar os governados intelectualmente independentes
dos governantes, para destruir uma hegemonia e construir outra, como momento
necessário da revolução da prática” (Gramsci, apud Kramer 1975, p.79).
Essa noção de uma hegemonia ideológica conduz ao conceito de
“bloco histórico”, central para Gramsci, com o qual ele procura compreender a
sociedade como “totalidade concreta” (Kramer 1975, p. 115) e colocar as
relações de classe em um contexto abrangente. “Por ser o Estado um modo de
constituição e organização de uma classe, (…) a unificação de diferentes
camadas sociais se realiza em um bloco histórico em torno de uma classe
dominante e em um Estado” (Buci-Glucksmann 1981, p.279). A condição para que
uma classe se torne dirigente, isto é, hegemônica, é “o papel decisivo que cabe
a essa classe na produção material” (Kramer 1975, p.96). “Se a hegemonia é
ética e política, ela também tem que ser econômica e ter seu fundamento na
função decisiva que o grupo dirigente exerce na zona central da atividade
econômica” (Gramsci, apud Schreiber
1982, p.47). Dessa forma, um novo “bloco histórico” se constitui através da
conquista da hegemonia econômica, política e cultural por uma classe, e “com a
tomada do governo pela classe em expansão, sua função hegemônica torna-se”
finalmente “também a de um Estado” (idem, p. 42)
Quando uma classe conquista a hegemonia completa, Gramsci
fala de um “Estado integral”, definido como “sociedade política e sociedade
burguesa, isto é, hegemonia, protegida através de coação”, ou “ditadura mais
hegemonia” (Gramsci, apud Perpektiven, 1988, p. 10). O que se deve
entender por isso? “Em sentido estrito, o Estado é idêntico ao governo, ao
aparato da ditadura de classe, na medida em que ele exerce funções econômicas e
coercivas. O domínio de classe é exercido através do aparato estatal em sentido
clássico (exército, polícia, administração, burocracia)” (Buci-Glucksmann 1981,
p. 88). Essa é a concepção clássica de Estado “como instrumento da
dominação de classe”, como “máquina de repressão da classe oprimida e
explorada” (Engels, apud Schreiber
1982, p. 25).
Gramsci expande esse conceito de Estado como aparato de
coerção (“società política”) ao conceito de “società civile” enquanto sociedade
burguesa/civil. Esse conceito refere-se por um lado “às ‘sociedades
capitalistas’, ou seja, às condições de vida materiais, ao sistema privado de
produção. Por outro, ele implica no aparato ideológico-cultural da hegemonia,
no aspecto educacional do Estado” (Buci-Glucksmann 1981, p.78). Este último se
manifesta no “conjunto de todos os organismos comumente denominados de
‘privados’” (Gramsci, apud Schreiber
1982, p. 26), pelo que se deve entender “instituições como escolas,
universidades, igreja, associações, sindicatos e meios de comunicação de massa”
(Kramer 1975, p. 84).
“Società civile” e “società política” podem ser conceituadas
como “planos efetivos”, que formam, como Schreiber o formula, “uma unidade que
abrange todas as esferas estatais e sociais” (Schreiber 1982, p.130). O Estado
se apresenta então, ao lado de seu papel de aparato de coerção, e através dos
instrumentos de hegemonia, entendidos como culturais, políticos e econômicos,
como “organisador da aprovação” (Buci-Glucksmann 1981, p.86), que constrói um
“consenso dos governados” (Gramsci, apud Schreiber
1982, p.29) e assim assegura à “classe dominante” a hegemonia sobre a
sociedade. Segundo Kramer, “a relevância que cabe à dominação hegemônica se
torna clara no fato de Gramsci falar de ‘hegemonia e consenso’ como a ‘forma
necessária’ de um bloco histórico, ou seja, somente através de uma relação de
hegemonia se forma uma unidade real e duradoura entre base e superestrutura,
surge um ‘Estado integral’” (Kramer 1975, p.94)
Assim, “dominante” é aquela classe cujo domínio não é
baseado somente sobre uma coação pura, mas aquela que é dirigente também em
função de sua “hegemonia”. “Ela não tem apenas o poder ou a competência para
dirigir, mas possui também o meio para a socialização de seu programa: o
Estado” (Schreiber 1982, p.50), “isso significa a organização material que
sustenta, defende e desenvolve a ‘frente’ teórica e ideológica” (Gramsci,
Schreiber 1982, p.60). Essa “estrutura ideológica de uma classe dominante” se
expressa nos “aparelhos de hegemonia”, que “formam de maneira coerente a
consciência do cotidiano de grandes massas humanas”, isto é, as “submetem à
ideologia dominante” (Perspektiven 1988,
p.13). “O desenvolvimento de modelos de pensamento e comportamento conformes
com o sistema se dá de forma planejada através das ditas instituições
‘privadas’ da sociedade burguesa” (Kramer 1975, p.92), e o proletariado é por
conta disso “subalterno, por estar submetido ao aparato hegemônico da classe
dominante” (Karin Priester, apud Perspektiven 1988, p.13).
Com a concepção de Estado integral, os “aparatos de
hegemonia” alcançam consequentemente um lugar central na “luta de classes”. Se
for possível quebrar a hegemonia da “classe dominante”, sua dominação social
estará posta em questão, uma vez que o Estado “não é um simples instrumento nas
mãos de uma classe, que o ‘manipula’” (Buci-Glucksmann 1981, p.95), não é uma
“coisa”, mas “a condensação de uma relação de forças” (idem, p.74) entre as
classes, uma relação que pode estar em um “equilíbrio instável”, “que se
caracteriza por uma alternativa simples: ou revolução ou reação” (Gramsci,
Buci-Glucksmann 1981, p. 93). Em função disso, depende “da relação entre as
forças presentes” se a classe dominante estará ou não em condições de “cimentar
um bloco de forcas sociais heterogêneas”.[vi]
3. A sociologia revolucionária de Gramsci
O conceito de Gramsci de “Estado integral”, ou de “bloco
histórico”, é frequentemente interpretado como o substrato verdadeiramente
original de seu pensamento, por representar a tentativa de compreender a
sociedade como totalidade.[vii] E
de fato, seu princípio teórico, em termos históricos, representa um avanço
sobre aquelas interpretações marxistas que só eram capazes de ver no Estado um
instrumento de opressão da “classe dominante”. No entanto, esse avanço se
mostra ambivalente, pois ele é acompanhado por uma reformulação da idéia de
luta de classes, num momento em que ela se torna cada vez mais obsoleta. Um
mínimo de reflexão mostra logo que o Estado moderno não pode mais ser
interpretado como simples instrumento de domínio “da burguesia”. O Estado
burguês, em sua fase inicial, de fato trazia momentos fortemente privatistas. Mas
seu desenvolvimento na direção de uma instância coisificada de socialização,
que fornece a “infra-estrutura” para a valorização do valor, não poderia deixar
o pensamento teórico de esquerda intocado. Caso que podemos conceber Gramsci
como um sociólogo, porém como um sociólogo que procura dar a sua teoria uma
guinada revolucionária. Como o pensamento sociológico comum (aliás, junto com
todo o marxismo), ele opera dentro das categorias superficiais da sociedade
burguesa, assim como com entidades positivas, que são jogadas umas contra as
outras mas que não podem ser abolidas enquanto tais. Ele pressupõe que as
esferas em estado de desintegração da ordem burguesa são dissociadas umas das
outras e só consegue imaginar a totalidade social como uma interação externa
dessas esferas, como uma resultante do paralelograma de forças dos grupos
sociais que agem dentro delas. Ele permanece cego perante à forma burguesa de
socialização subjacente aos conflitos de interesse entre as máscaras do
capital.[viii] Enquanto que Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, dizem que “o Estado é
a forma, dentro da qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus
interesses comuns e toda a sociedade burguesa de uma época se resume”
(Marx/Engels, apud Kramer
1975, p.93), Gramsci compreende “a burguesia”, que dá a si própria “uma forma
geral” no Estado (idem, p.89), como um “grupo social” (Gramsci, apud Kramer 1975, p.89) de
indivíduos que têm a característica de ser proprietários de meios de produção.[ix]
No entanto, a propriedade privada não é uma “característica”
de determinadas pessoas ou de grupos de pessoas. Ela é uma forma de
socialização social-fetichista, que se constitui na medida em que os indivíduos
se relacionam uns com os outros enquanto donos de mercadorias e por isso têm
que se reconhecer mutuamente como proprietários.[x] A
relação de valor põe os indivíduos como sujeitos de direitos e assim constitui
ao mesmo tempo a forma social geral, dentro da qual esses indivíduos são
relacionados uns com os outros: o direito. A expressão dessa generalidade
abstrata das mônadas monetárias e jurídicas burguesas é o Estado. Mas assim
como a forma valor “reflete para as pessoas os caracteres sociais de seu
próprio trabalho como caracteres coisificados dos produtos do trabalho, como
características naturais sociais das coisas” (Marx 1890, p.86), a forma-direito
transforma a propriedade de uma forma de socialização em uma “característica”
pessoal dos seres humanos.
Assim como a socialização pelo valor como um todo, o Estado
e o direito devem ser entendidos como categorias processuais reais, que somente
conseguiram se transformar em conceitos após diversos impulsos de
desenvolvimento. O Estado moderno, assim como o direito moderno, surgiu de uma
“racionalização material” (Max Weber) da dominação. As necessidades produzidas
pelo avanço da valorização capitalista não podiam mais ser administradas pelo
direito arbitrário de poderes intermediários particulares, elas precisavam da
centralização de todo o poder no Estado soberano, que, assim como a manufatura
em desenvolvimento, começava a comprimir as pessoas em condições de “continuidade,
uniformidade, regularidade, ordem” (idem, p.365).
A Revolução Francesa evidentemente representa um enorme
passo na direção da formação do Estado moderno. Se o Estado absolutista ainda
era acima de tudo um aparato de coerção para o recolhimento de divisas, e nesse
sentido ainda ligado aos interesses e privilégios da nobreza dominante (isto é,
ainda em um estágio de “limitação concreta”, para acompanhar Hegel), a
burguesia, com a proclamação de direitos humanos inalienáveis e a juridicização
do Estado através da divisão de poderes (que tem a pretensão de colocar na
lugar da forma-fetiche do príncipe a soberania geral e abstrata do direito),
deu impulso a um processo que, segundo Marx, fez com que o Estado se tornasse
um Estado de verdade, ou seja, uma coisa pública. No entanto, foram precisos em
torno de mais cento e cinqüenta anos e enormes conflitos sociais até que essa
condição estivesse finalizada na forma da moderna democracia de massas
pluralista.
O pensamento de Gramsci deve ser compreendido com o pano de
fundo do processo de afirmação da moderna democracia de massas. Pode-se dizer
que seu conceito de “estado integral” tenta descrever esse processo. Porém, sua
descrição não é a de um processo em que o Estado se despe de seus momentos
privatistas, mas, ao contrário, é o de um processo em que uma determinada
classe se tornaria dominante. Para Gramsci, portanto, esse desenvolvimento se
apresenta como invertido, de maneira que a burguesia, que ele descreve como
“grupo dirigente na esfera econômica do capitalismo”, se torna ao mesmo tempo a
classe universal dessa formação social, porque seu
comportamento determina o desenvolvimento social. Sua ascensão a
“classe dirigente”, à condição de “classe que se torna Estado”, descreve,
segundo Gramsci, “a passagem do momento meramente econômico (ou
egoísta-passional) ao momento ético-político, isto é, a base se torna
super-estrutura, o que se realiza na consciência das pessoas” (Gramci, apud Albers 1983, p.140). Essa
formulação, segundo Detlev Albers, é “o ponto central de todo o marxismo de
Gramsci” (idem, p.140), que permitiria a ele “elaborar conceitos universais,
armas ideológicas refinadas e decisivas”, “sem as quais uma afirmação da
hegemonia ‘no Leste’, assim como sua conquista ‘no Ocidente’, lhes parecem
impossíveis” (Gramsci, apud Albers
1983, p.140).
Pois se Gramsci descreve a “transformação de uma classe de
base em super-estrutura” em três fases, a “econômico-corporativa”, a
“ético-política” e a “estatal”, ele entende isso como um “modelo geral de pensamento”
de uma classe “que chega a si mesma” (Schreiber 1982, p.107), que também
deveria valer para a estratégia revolucionária do proletariado na situação de
‘guerra de posições’.[xi] Portanto,
segundo Gramsci, também o proletariado deve superar sua fase
“econômico-corporativa”, “que é a fase primeira e mais elementar das formas de
consciência, formas de organização e de prática política de uma classe” (idem,
p. 82), na qual “a solidariedade de interesses entre todos os indivíduos de uma
classe social … ainda se dá em uma esfera meramente econômica” e a “questão do
estado” só se coloca na medida em que a “igualdade político-jurídica com a
classe dominante deva ser atingida” (Gramsci, Schreiber 1982, p.83). A assim
conquistada “igualdade político-jurídica” se tornaria o “terreno” para se
desenvolver para além da fase econômico-corporativa e subir a uma fase de
hegemonia ético-política dentro da sociedade burguesa, e dominante do Estado”
(Gramci, apud Schreiber 1982, p. 84).
Essa fase, prossegue Gramsci, estaria ligada ao
“desligamento da visão de mundo da classe subalterna da visão de mundo da
classe dominante, à reforma intelectual e moral e à formação da vontade
coletiva” (idem, p.87); um movimento que, para Gramsci, se deixa ilustrar com a
Revolução Francesa, que representaria “um tipo concluído de desenvolvimento
harmônico de todas as energias nacionais” (Gramci, apud Buci-Glucksmann 1981, p.61), por a burguesia ter lá
superado sua “tendência corporativista” e “ido ao encontro aos interesses das
classes subalternas”. Pois, para Gramsci, o decisivo é que “não a classe em si,
mas o desenvolvimento de toda a nação… tem primazia no interesse de uma
classe que se desenvolve na direção da hegemonia” (Schreiber 1982, p.102).[xii]
Só essa referência afirmativa à nação já caracteriza Gramsci
como teórico burguês da modernização, o que só é compreensível diante da
retardada e precária formação do Estado nacional italiano. A nação como
território politicamente unificado e definido pela soberania jurídica, o espaço
dentro do qual os donos de mercadorias se relacionam entre si, ainda não havia
nem de longe sido realizado e nesse sentido também o nacionalismo como
ideologia generalizante ainda não fora aposentado. Assim como a liberdade e
igualdade dos donos de mercadorias dentro da esfera de circulação da Revolução
Francesa aparecia como “um verdadeiro Éden dos direitos humanos inatos” (Marx
1890, p.189), a “fraternidade” se tornara o lema ideológico para a
nacionalização das massas e o nacionalismo a ideologia adequada para a
imposição da juridicização e democratização gerais.
Gramsci posiciona sua “filosofia da práxis” completamente na
tradição da revolução burguesa. Ele expressamente a descreve como um “nexo de
reforma protestante e revolução burguesa” (Gramsci, apud Schreiber 1982, p.93), os dois mais importantes impulsos
históricos da imposição da mônada geral monetária e jurídica, respectivamente
em seu reflexo religioso e em sua versão secularizada do nacionalismo. Na
revolução de 1789 se tratava, segundo Gramsci, de “uma grande reforma
intelectual e moral do povo francês”, que teria tentado “substituir a religião
por uma ideologia totalmente laica, nacional e patriótica”. Nada está mais
distante dele do que criticar isso, pois “não se pode tirar do homem do povo
sua religião sem lhe dar algo em troca que satisfaça as necessidades em função
das quais a religião surgiu e ainda vive” (idem).[xiii]
4. Partido comunista e processo capitalista de modernização
O “modelo geral” gramsciano da ascensão de uma classe à
condição de hegemonia social encontra sua sequência de desenvolvimento em sua
teoria do partido comunista. O partido comunista é em Gramsci “a forma de
organização mais elevada do sujeito revolucionário, o intelectual coletivo”,
que está impelido a “ele próprio tornar-se Estado” e a “moldá-lo à sua imagem e
semelhança”. Ele deve reunir em si “todas as exigências da luta geral” (Gramsci
1980, p.117). É sintomático para seu politicismo que ele ilustra essa idéia com
base em O Príncipe de Maquiavel: “em todo o pequeno livro, Maquiavel
trata das características necessárias ao príncipe para conduzir o povo à
fundação de um Estado” (Gramsci 1980, p.253).[xiv] Segundo
Maquiavel, um príncipe chega ao poder “através de uma astúcia bem-sucedida e
um cortejo pelo apreço do Povo” (Maquiavel 1513, p.54). No entanto,
conforme Gramsci, “na época moderna da revolução proletária” um tal “príncipe
do povo” não pode mais ser uma “pessoa carismática”[xv] (Caponi
de Hernandez 1989, p.108), “não pode mais ser um indivíduo concreto … mas
somente um organismo, um elemento social complexo, no qual … uma vontade
coletiva começou a se concretizar. Esse organismo já está presente em função do
desenvolvimento histórico e consiste no partido político” (Gramsci 1980,
p.253).
O conceito de partido em Gramsci é aquele da moderna grande
organização da época de massas, ou melhor, é aquele da inclusão na política das
massas separadas de suas raízes de classe. Para Gramsci, o partido deve ser um
“intelectual coletivo”, “a instância de classe totalizante, intelectual e
moralmente unificadora”, sua “nomenclatura” (apud Perspektiven1988,
p.12). Nisso ele concorda com Lenin, “que a necessidade de uma liderança forte,
de unidade e disciplina existe no próprio partido” (Caponi de Hernandez 1989,
p.120). No entanto, rejeita um partido de quadros de “revolucionários
profissionais”. Essa última observação está ligada ao fato de Gramsci ter
reconhecido de forma muito clara as diferenças entre a situação social russa e a
italiana. Exatamente em função do fato de a Rússia apresentar um grande atraso
em termos de modernização em relação aos países na Europa central e ocidental,
pelo fato de lá a “sociedade civil” praticamente não estar desenvolvida, o
partido comunista (como a chamada “vanguarda revolucionária do proletariado”)
pode chegar ao poder através de uma “guerra de movimentos”. “No Oriente o
Estado era tudo, a sociedade burguesa estava em seus primórdios, e os contornos
eram fluidos. No Ocidente reinava uma relação equilibrada entre Estado e
sociedade burguesa, e se o Estado era abalado revelava-se rapidamente a sólida
estrutura dessa sociedade burguesa. O Estado era somente uma trincheira
avançada, atrás da qual havia uma série de robustas fortificações e casamatas”
(Gramsci 1980, p.273). Em função disso, tinha-se que contar com uma “luta
prolongada … da classe trabalhadora” pela “hegemonia em todas as esferas da
vida social já antes da revolução” (Schreiber 1982, p.114).
Abstraindo-se do fato de que o que ocorreu na Rússia de
forma alguma foi uma “revolução socialista”, mas uma revolução burguesa, com a
qual foi dado início a uma determinada variante de modernização capitalista
recuperadora, e que também na Itália a socialização pelo valor historicamente
ainda estava por vir, essa avaliação reflete as diferenças reais no nível de
socialização entre os dois países. Daí se explica o caráter mais moderno do
conceito gramsciano de partido (assim como a plausibilidade relativa de seu
conceito de sociedade civil).[xvi]
A “principal tarefa do partido” na fase de “guerra de
posições” deve ser, segundo Gramsci, “a reforma intelectual e moral” (Caponi de
Hernandez 1989, p.111) das massas. Sua realização deve permitir ao partido “se
expandir enormemente, para construir uma hegemonia … pela unificação de todas
as faixas da população”, no que o partido “é o elemento intermediador, que
transforma o embrião da vontade coletiva do início do processo revolucionário
na expressão da sociedade como um todo. Através do partido e de sua função
educativa, as massas se transformam gradualmente em agentes conscientes do
processo revolucionário” (idem). O problema que Gramsci coloca não é
essencialmente diferente do que Lenin formulou: o nível de desenvolvimento das
relações sociais é baixo demais para que exista a possibilidade de um amplo
desenvolvimento dos indivíduos, pelo que não pode ser abolida a separação entre
“dirigentes” e “dirigidos”, a divisão entre trabalhadores braçais e mentais. No
entanto, isso se apresenta a Gramsci como uma característica estrutural
fundamental da sociabilidade moderna, que não pode ser abolida. Ele reconhece
com muita clareza que a progressiva divisão social do trabalho da sociedade
industrial está ligada a um desdobramento das possibilidades e capacidades dos
indivíduos e esses são cada vez mais incluídos nos processos sociais, mas que
isso não leva a uma dissolução das hierarquias sociais, mas somente à sua
diferenciação dentro de uma simultânea coisificação.
Ele considera esse desenvolvimento inevitável, mas pensa
poder dar a ele uma forma “democrática”, sob um “governo socialista”. O ideal
desejável para ele consiste em “treinar em termos críticos a atividade
intelectual que existe em algum grau em qualquer pessoa, dar à sua relação com
o esforço muscular um equilíbrio novo e conseguir que o próprio esforço
muscular … se torne a base de uma nova e integral visão de mundo”
(Gramsci, apud Showstack-Sasson
1989, p. 105). O trabalho abstrato, portanto, não deve ser abolido, mas somente
enriquecido moralmente. Gramsci acusa os fascistas de quererem fixar as
hierarquias em termos jurídicos e classistas e de conduzirem a modernização de
forma a “darem a alguns capacitados a possibilidade de melhorar suas capacidades,
mas ao mesmo tempo solidificando as diferenças sociais” (Showstack-Sassoon
1989, p.97).
Em oposição a isso, ele exige “que qualquer ‘cidadão’ possa
se tornar um ‘governante’ e que a sociedade o coloque, mesmo que abstratamente,
em condições de fazê-lo … pelo que deve ser garantida a qualquer governado a
aquisição gratuita da capacidade e da formação técnica geral necessária a esse
objetivo” (Gramsci, Showstack-Sassoon 1989, p.96). Dificilmente seria possível
definir de forma mais exata a tarefa estatal de educação nos termos da moderna
socialização pelo valor. Onde Gramsci pensa dar uma “resposta socialista” à por
ele suposta “crise de longo prazo do capitalismo” (idem, p.97), ele na verdade
formula um programa que, nos anos após a Segunda Guerra Mundial, foi posto na
ordem do dia sob o rótulo muito mais prosaico de “igualdade de oportunidades”.
Quando se despe sua noção de “estado operário” de suas roupagens ideológicas,
pode-se constatar que ela corresponde de maneira relativamente exata ao que nos
últimos quarenta anos se tornou a realidade social nas democracias de massa
ocidentais (mas que, nesse meio tempo, ela própria entrou em crise).
O fato de seu conceito de partido não ser muito mais do que
uma “variante light” do exemplo leninista está em contradição somente aparente
com sua noção de democracia. O partido comunista, o “príncipe moderno”, deve
figurar como “coletivo individual” (apud Buci-Glucksmann
1981, p.175) e assim substituir o “centralismo burocrático” (idem), no qual a
relação entre partido e classe trabalhadora é “puramente hierárquica, de tipo
militar” (idem, p.173), por um “centralismo democrático” (idem p.175). Nisso “a
relação classe-partido deve ser … orgânica e não burocrática” (idem
p.173), os líderes da classe operária devem personificar “seus interesses e
desejos mais básicos e vitais”, devem ser “uma parte da classe operária”, e não
somente “um apêndice, um simples enxerto violento” (apud Buci-Glucksmann 1981). Buci-Glucksmann enxerga nisso “um
repúdio de qualquer relação burocrática-militar com as massas”, como a
“política stalinista o praticou” (idem). Esse repúdio, no entanto, permanece
teoria árida, se esgota no polimento de um conceito, do qual a estrutura básica
(a “independência relativa dos líderes em relação à sua base social”, como
Werner Hofmann eufemisticamente define o stalinismo; Hofmann 1984, p.53)
consiste na própria forma organizacional do partido político, que
necessariamente deve entrar em contradição com os interesses particulares
(constituintes do valor) de seus membros, em que essa forma organizacional se
coloca na posição do interesse geral abstrato.[xvii]
A reformulação empreendida por Gramsci do conceito de
“centralismo democrático”, criado por Lenin, deveria corresponder ao nível de
consciência mais elevado das massas italianas, assim como às exigências de
disciplina e subordinação no interior do partido; ela deveria, como Schreiber o
formula, possibilitar “a dialética de intelectuais e a massa, de espontaneidade
e liderança” (Schreiber 1982, p.120). Essa suposta “unidade entre intelectuais
e a massa do povo, entre governantes e governados” (Gramsci, apud Caponi de Hernandez 1989,
p.114) baseia-se na “estrutura em três níveis” do partido (idem, p.115); seu
primeiro elemento são “as pessoas comuns medianas, cuja participação consiste
em disciplina e lealdade” (idem, p.109). Elas formam a “base social do partido”
(idem). O segundo elemento “é o elemento principal de coesão… dotado de uma
força altamente coesiva, centralizadora, e criativa (idem); trata-se da direção
do partido, da qual Gramsci diz que seria mais fácil ela formar um partido do
que o primeiro elemento” (idem). O terceiro elemento, finalmente, exerce uma
função de intermediação, em que ele serve de ligação entre o primeiro e o
segundo elemento”; trata-se dos assim chamados “intelectuais orgânicos do
proletariado”, cujo trabalho “deve permitir a interação e integração política,
moral e intelectual entre massas e direção” (idem, p.110).[xviii]
A essa “divisão em diferentes níveis partidários” Gramsci dá
a legitimação de uma necessidade de “divisão do trabalho”; ele, portanto, a
compreende como uma divisão “antes técnica” (idem, p.115). Por isso, a
subordinação nela contida teria um “caráter democrático”, pois, se “a origem do
poder, que determina a subordinação” é “democrática”, se, portanto, a
autoridade é uma função técnica específica e não uma ‘arbitrariedade’, então a
disciplina é um elemento necessário da ordem e liberdade democráticas” (idem),
que “não abole a liberdade nem a personalidade” (idem) – mas que, poderia ele
ter acrescentado, esvazia esses conceitos e os transforma naquelas frases que
são compatíveis com qualquer programa eleitoral. O conceito gramsciano de
partido reflete a estrutura coisificada, mas não menos hierárquica, do moderno
aparato de produção industrial, e sua postura completamente apologética em
relação a ela lembra fatalmente aquele ditado hegeliano segundo o qual a
liberdade é a consciência da necessidade.
Não mais o pertencimento a uma classe capitalista, entendida
em termos personalistas, mas a competência técnica, deve legitimar a pretensão
à liderança, e em função disso a abolição da “dominação da burguesia” é vista
já como abolição do capitalismo. O que é historicamente novo no capitalismo
permanece encoberto sob esse ponto de vista: a transformação da dominação
pessoal em dominação formal ou coisificada, a subordinação de todas as esferas
da vida sob a racionalidade da relação de valor. Elementos como
“arbitrariedade” só atrapalham na execução de necessidades objetivas, que não
se deixam reduzir à vontade e à ação consciente de sujeitos de classe. A
forma-valor nas relações se materializa também na maquinaria capitalista e nas
condições técnicas, que se apresentam às pessoas sob a forma de necessidades
objetivas, fato pelo qual a questão do “pertencimento a uma classe” de um
técnico que dá uma ordem a um trabalhador é secundária e fica sociologicamente
na superfície da relação capitalista.
Em função do fato de ficarem presas no interior do horizonte
da socialização pelo valor, suas aporias se reproduzem também dentro do partido
comunista. Como a separação entre “líderes” e “liderados” não é possível de ser
abolida sob as condições da modernização capitalista, a situação dos
“liderados” não pode ser modificada substancialmente. Daí só restar a tentativa
de “humanizar” os princípios burgueses de disciplina e subordinação, o que soa
como o conceito de “cidadão uniformizado emancipado” ou como novos métodos de
gerenciamento empresarial: “disciplina e unidade não devem ser impostas, mas
brotar de discussões e debates gerais” (Caponi de Hernandez 1989, p.120); “os
membros não devem seguir mecanicamente ordens vindas de cima, mas devem …
seguir estratégias e táticas que eles entenderam completamente e até ajudaram a
formular” (idem, p.115). Não é novidade que esse conceito não tem muito a ver
com a realidade histórica do partido comunista, para dizer o mínimo. O próprio
Gramsci disse a verdade quando escreveu, sobre o PC italiano, que os membros
individuais “tendem a pensar que ele realmente existe sobre os indivíduos, um
ser fantasmagórico … uma espécie de divindade autônoma” (idem). Quem não
reconheceria nessas palavras o caráter fetichista da forma-valor da relação dos
“liderados” com seus “líderes”, que pelo visto se impôs mesmo contra a vontade
desses últimos?
5. A imposição da sociedade do trabalho e a identidade secreta entre fordismo, socialismo e fascismo
A contradição fundamental entre os interesses imediatos dos
indivíduos e o interesse geral abstrato, criada pela forma-valor e que
constitui a política como esfera isolada da vida social e que, além disso, se
reproduz no “centralismo burocrático” dos partidos comunistas, não desaparece
nem se o partido, para usar as palavras de Gramsci, “alcança sua completude” (apud Caponi de Hernandez 1989,
p.112), quer dizer, se ele se torna Estado. O Estado socialista é por um lado
apenas “um Estado burguês sem burguesia” (Gramsci, apud Buci-Glucksmann 1981, p.143), mas deve tendencialmente
transformar-se em um “Estado de novo tipo”, que tem como objetivo “a superação
da diferenciação burguesa entre economia e política”, como Franco De
Felice o formula (idem, p.151). O que soa como a abolição da divisão em
esferas, examinado mais de perto se desmascara como reformulação do esquema
base-superestrutura: Gramsci “subdivide … o conceito de Estado em aparato de
poder estatal e em sistema de intercâmbio e produção” (idem, p. 144) e,
enquanto que o Estado possa ser “preservado e desenvolvido como princípio de
organização econômica industrial de um país”, ele, enquanto “princípio de
exercício de poder”, “perecerá quanto mais rápido os trabalhadores estiverem
disciplinados e incluídos na produção” (Gramsci, apud Buci-Glucksmann 1981).[xix]
Até então, o “estado operário” deve ser visto ainda como o
Estado no sentido moderno, pois, conforme Gramsci, ainda existe “a sociedade
dividida em classes”, e daí também o Estado, “a forma característica de toda
sociedade dividida em classes”, por muito tempo não poderia desaparecer.
Entretanto, “o Estado que estivesse nas mãos dos trabalhadores e camponeses”,
seria usado para “garantir sua liberdade de desenvolvimento, para extinguir
completamente a burguesia da história e para consolidar as condições materiais,
sob as quais nenhuma opressão de classe possa mais se formar” (Gramsci 1980,
p.55). Quando essa promessa vaga será cumprida, entretanto, permanece
completamente indeterminado (e até nisso Gramsci é ortodoxamente marxista).
Logo após a revolução socialista, algo totalmente diverso
estará na ordem do dia: “a concorrência e as classes continuam a subsistir”, no
entanto os conceitos de “concorrência e luta de classes” são “deslocados” para
o plano internacional. “A ditadura do proletariado ainda é um Estado nacional e
um Estado de classes”, que deve solucionar os mesmos problemas que o Estado
burguês: defesa interna e externa”, pois o período após a Revolução será “a
época de concorrência impiedosa entre economias nacionais comunistas e
capitalistas” (idem, p.73).
O que Gramsci formula nesse contexto é evidentemente um
programa de modernização de economias nacionais, o que é compreensível diante
da situação histórica da Itália após a Primeira Guerra Mundial. A guerra havia
acelerado mais ainda a formação do mercado mundial capitalista, e assim causado
uma generalização e um acirramento da concorrência mundial, o que não tornava
fácil a um país atrasado em termos europeus e fortemente dependente do mercado
mundial como a Itália manter o passo com esse desenvolvimento. O que estava
objetivamente na ordem do dia para a Itália dos anos vinte
(objetivamente em relação à socialização pelo mercado mundial) era uma
industrialização acelerada e uma socialização do país, combinada a uma
mobilização das massas para esse objetivo.[xx] E
isso, por sua vez, implicava em que a mônada do trabalho e o cidadão abstrato a
ela logicamente ligado se tornassem a forma de existência geral da sociedade.[xxi]
Nesse sentido, não surpreende que Gramsci nos anos vinte
essencialmente apenas afirmasse o “fordismo” incipiente. Ele é para Gramsci “um
desenvolvimento racional e por isso generalizado” (apud Perspektiven 1988,
p.59), que, conforme ele ressalta, surge “a partir da necessidade imediata da
organização de uma economia planificada” (apud Priester
1989, p.13). Daí os imperativos do fordismo terem que ser impostos também
contra a resistência das camadas tradicionais e se ligar à “composição
demográfica racional da população”, na qual não poderão mais haver “classes sem
função essencialmente produtiva, quer dizer, classes absolutamente
parasitárias” (apud Perspektiven 1988, p.60), ou seja,
camadas da população não incluídas no processo de criação do valor.
Em sua ânsia de elevar a mônada do trabalho à condição de
forma de existência geral da sociedade, Gramsci perde a distância crítica
perante a violência estrutural do aparelho de exploração na forma do valor. Ele
reconhece com clareza que o fordismo implica na criação de um novo tipo de
trabalhador fabril, que está à altura das condições produtivas da
“racionalização taylorista” Gramsci, apud Perspektiven 1988, p.60).
Isso, por sua
vez, exigiria “um treinamento geral, um processo de adaptação psicofísica a
determinadas condições de trabalho, de alimentação, de moradia e dos hábitos, o
que não é nada ‘naturalmente’ inato, mas que tem que ser adquirido” (idem,
p.60). A racionalização psicofísica dos indivíduos não poderia, portanto, ficar
limitada à esfera fabril, mas teria que englobar toda a vida, principalmente a
esfera da reprodução, ou seja, âmbitos como a sexualidade e a alimentação, o
uso moderado do álcool, a higiene corporal ou a repartição econômica do
salário. “Os novos métodos exigem uma disciplina rígida dos instintos sexuais
…, quer dizer, um reforço da ‘família’ em sentido amplo… assim como a
regulamentação e estabilidade das relações sexuais” (idem, p.60). Resumindo: os
indivíduos devem criar uma rígida “autodisciplina”, internalizar as
necessidades objetivas do sistema do trabalho abstrato.[xxii]
Um verdadeiro “desenvolvimento orgânico” do fordismo,
segundo Gramsci, só teria ocorrido nos EUA. Lá, o fordismo “não significa
somente inovações tecnológicas e de eficiência do trabalho dentro da fábrica …
mas, além disso, a participação do trabalhador na crescente riqueza do sistema
capitalista na base de salários elevados e preços relativamente baixos para os
produtos de massa” (Priester, 1989, p.13). Isso deve possibilitar “nada
menos do que a superação da luta de classes por uma nova imagem das relações
das classes entre si”, uma vez que “ambas as partes … ganham com a elevação da
disciplina de trabalho e da reestruturação das fábricas” (idem). No fordismo
americano, “a coação … estaria combinada com a convicção e o consenso”
(Gramsci, apud Perspektiven 1988, p.61); a
“participação no consumo de massa”, intermediada pelo emprego,
significaria a possibilidade da “inclusão” das massas na “parceria social”
(idem).
Nos países da Europa, em contrapartida, esse desenvolvimento
foi imposto pela “fúria implacável” da economia norte-americana, que obrigou
especialmente a Itália a “virar pelo avesso sua economia e base social
excessivamente antiquada” (Gramsci, apud Perspektiven 1988, p.63). Nos países
atrasados, portanto, o fordismo ganha para Gramsci sua significação de
instrumento de uma modernização que “necessita de um impulso externo” (idem,
p.62). Como instância que “conduz a partir de fora os desenvolvimentos
necessários do aparato produtivo” (idem) só entra em consideração o Estado, e
esse adquire na Itália uma forma corporativista ou fascista.
É necessário dizer que o ponto central não é a intervenção
estatal em si, que nos EUA do New Deal também ocorre, mas muito mais a forma
específica de estatização, forçada pelo relativamente baixo nível de
desenvolvimento da socialização pelo valor, que nas (como eu gostaria de
denominar) “variantes totalitárias” do fordismo, ou seja, o fascismo italiano,
o nacional-socialismo alemão e o bolchevismo russo assume um caráter de
violência incomparavelmente maior. Nelas falha a fórmula mágica da síntese
entre produção e consumo de massa, que permite desviar os conflitos da luta de
classes para o âmbito dos ordenados conflitos de distribuição. As promessas
consumistas lá são ficção científica: se uma Itália autônoma estiver forte o
bastante para se desligar do mercado mundial …, se a Alemanha após a “vitória
final” dominar o “espaço econômico europeu” …, se a indústria pesada soviética
estiver tão avançada que até o desenvolvimento da indústria de bens de consumo
for possível… Até lá, como se poderia dizer nas palavras de Gramsci, o fordismo
é em primeiro lugar “uma luta prolongada contra o elemento ‘animalesco’ no
homem, um … processo que muitas vezes é doloroso e sangrento, a subjugação dos
instintos … a normas e hábitos sempre novos, cada vez mais complexos e rígidos
em termos de ordem, de justiça, de precisão, que possibilitam formas de vida
coletiva cada vez mais complexas, que são a conseqüência necessária do
desenvolvimento do industrialismo” (Gramsci, apud Kebir 1989 II, p.56).
O caráter “objetivista” dessa citação dos “Cadernos do Cárcere”, na qual Gramsci
ressalta a inevitabilidade da generalização da abstrata mônada do trabalho,
está em evidente contradição com a disseminada avaliação de Gramsci como o
representante de um “marxismo subjetivista-idealista” (Christian
Riechers, apud Perspektiven 1988, p.63). O
desaparecimento da perspectiva revolucionária e a forçada abstinência da práxis
dos anos da prisão fizeram com que o lado “voluntarista” do período anterior
fossem para segundo plano, um desenvolvimento teórico cuja aparente contradição
serve para revelar a identidade secreta dos dois pontos de vista. De fato, o
Gramsci do período do Ordine Nuovo dos anos vinte[xxiii] e
sua demanda por um “estado social do trabalho”, que contrapusesse à
“liberdade liberal … do indivíduo burguês abstrato … uma outra liberdade, a do
produtor” (apud Buci-Glucksmann
1981, p.124), já adiantava a posição do Gramsci da época da prisão em relação
ao fordismo.[xxiv]
A adoção quase completa do fordismo por Gramsci foi
interpretada por um de seus atuais seguidores, Sergio Bologna, no sentido de
que “seu interesse … pelos programas de reeducação do fordismo”, assim como seu
“conceito de poder”, foi “uma posição corretamente ‘esclarecida’ e … que teve
pouco a ver com o exercício da violência”, mas com “cultura” e “educação”
(Bologna 1989, p.21). Infelizmente, as relações entre esclarecimento e educação
e o exercício de violência na prática não se deixam solucionar tão facilmente
como na ideologia, apenas com a presença de aspas. Nas variantes “totalitárias”
da imposição do fordismo sua violência estrutural se revelou sob formas
variadas. O indivíduo não é definido aqui como o burguês consumidor com direito
de escolha (também de escolha política), mas como o átomo producente no
interior de um coletivo, cuja relação com a política permanece limitada a pura
aclamação. A mobilização das massas vem acompanhada de sua militarização, da
organização estatal de seus momentos de lazer, da racionalização de seus
hábitos, da coação à eficiência e disciplina política; tudo isso baseado na
destruição de formas de organização independentes e de condições de vida
desviantes, na homogeneização da estrutura da população através de exclusão ou
inclusão forçada na sociedade dominada pela incipiente ditadura da valorização
do valor.[xxv] Essa
engenharia social vem acompanhada e apoiada por ideologias que invocam a
superioridade de uma raça ou a missão histórica de uma classe e que assim
reconduzem as massas em movimento à condição de paralisia política.[xxvi]
Certamente não é por acaso que, como escreve Angelika
Ebbinghaus, “Stalin, Hitler e Roosvelt .. no final das contas eram todos
entusiasmados adeptos do fordismo” (Ebbinghaus 1983, p.221), assim como
Mussolini e os social-democratas alemães e austríacos.[xxvii] Isso
é um reflexo do impulso modernizante, que se impôs independentemente da vontade
dos envolvidos, mas que nisso assumiu diversas roupagens ideológicas. Por isso,
é possível afirmar que aquilo a que o fascismo italiano deu início (e a
sociedade do trabalho fordista prosseguiu após a guerra) está estruturalmente
de acordo com o que Gramsci havia desenhado anos antes sob outra marca ideológica.
Baseado na teoria leninista do imperialismo, ele já nos anos 20 havia
repetidamente ressaltado que a classe burguesa consistia então somente de
parasitas vivendo de renda, “o capitalismo… se tornou plutocrático” (apud Buci-Glucksmann 1981, p.314) e
o Estado italiano havia se degenerado a um “monopólio em mão estrangeiras”
(idem, p.132). Gramsci via a Itália como transportada para a “época da luta
pela unidade nacional” (idem), e ele tinha a forte convicção que “somente o
Estado proletário” poderia “deter a dissolução da unidade nacional” (idem), uma
vez que a classe operária teria se tornado a “única classe nacional” (idem).
Gramsci via a legitimação dessa afirmação na “posição
econômica chave” (apud Schreiber
1982, p.47) do proletariado e em sua capacidade exclusiva de “continuar a
desenvolver as capacidades produtivas”: “no que… os operários… aumentam o
rendimento do aparato produtivo… eles demonstram que o governo da nação pode se
basear em sua organização de classe” (apud Buci-Glucksmann
1981 p.130). O que deveria valer então era “o primado do trabalho, do
produtor”, pois isso possibilitaria “pensar um Estado de novo tipo” (idem
p.313), um “Estado do trabalho (Togliatti), Estado dos produtores (Gramsci)”
(idem, p.122), que “deve ter como exemplo a organização econômica; seus membros
não são mais cidadãos, mas produtores” (idem, p.123); seus princípios seriam
“coerência, disciplina, unidade, organização, homogeneidade” (idem, p.150).
Também Mussolini havia exigido que “toda Itália” se tornasse
“um estaleiro, uma fábrica” (Nolte 1966, p.23) e declara: “em 10 anos não será
mais possível reconhecer a Itália” (idem). Para a realização desse programa, o
fascismo, na esfera da produção, fez uso dos mesmos métodos que o bolchevismo:
na União Soviética, segundo Trotsky, os sindicatos, deveriam se tornar “órgãos
de militarização do trabalho”, que deveriam “defender não os interesses do
trabalho, mas os do Estado” e que serviriam para “organizar a classe
trabalhadora para fins produtivos, para educar, disciplinar, repartir, agrupar,
designar os trabalhadores individuais a seus postos de trabalho por período
determinado, – ou seja, conjuntamente com o Estado e de forma imperial adequar
os trabalhadores ao plano econômico unificado” (apud Abosch 1984, p.64).[xxviii] Dessa
forma foi que, sob o fascismo, as organizações independentes da classe
trabalhadora foram esmagadas e substituídas por corporações profissionais
controladas pelo Estado. Sua tarefa era controlar o mercado de trabalho: “a
livre escolha do local de trabalho foi perdida e a intermediação de um emprego
estava ligada à obrigação de uma residência fixa” (Kebir 1989 I, p.50).
Da mesma forma que Gramsci fala da necessidade de um poder
que “seja capaz de criar para a classe trabalhadora tais condições de
alimentação e prosperidade que permitam um certo desempenho e um aumento da
produção” (Gramsci 1980, p.51), Mussolini entra com o programa de fertilização
das terras improdutivas, de melhoramento da infra-estrutura nas regiões
atrasadas e de industrialização da agricultura. Da mesma forma que Gramci exige
a formação de um “exército socialista” (idem, p.75), que corresponda ao
“caráter militar acentuado” do Estado operário (idem, p.73) e que seja formado
pelos “batalhões de aço do proletariado consciente e disciplinado” (idem,
p.72), o fascismo exige uma “nazione militarista”. E, finalmente, da mesma
forma que a principal tarefa após a revolução socialista vitoriosa seria “a
organização de um Estado socialista unido muito solidamente”, “que o quanto
mais rápido possível contenha a dissolução e a falta de disciplina, que dê ao
conjunto social uma forma concreta” (idem), o fascismo correspondeu a essa
necessidade à sua maneira, com a criação de um “Estado corporativo”.
As acusações que Gramsci faz ao fascismo em seu núcleo se
reduzem às de que o fascismo não tocava nas estruturas de exploração
capitalistas (pensadas em termos sociologistas), e por isso não poderia
realizar de forma consequente seu programa de homogeneização da sociedade e da
destruição de resquícios feudais e tradicionais.[xxix] Isso,
segundo Gramsci, só poderia ser desempenhado pela classe trabalhadora, ou
melhor, o partido comunista colocado no papel de um sujeito transcendental, que
“deve reassumir a educação do proletariado, acostumar ele à idéia de que
para uma abolição do estado … é necessário um tipo de estado que seja adequado
à perseguição desse objetivo, de que para a abolição do militarismo pode ser
necessário um novo tipo de exército. Isso significa, capacitar o proletariado
ao exercício da ditadura, ao autogoverno” (Gramsci 1980, p.73).[xxx]
Essas formulações remetem à definição de Werner Hofmann do
estalinismo como uma “ditadura interina” ou “ditadura pedagógica” (Hofmann
1984, p.48), cujo defeito, no entanto, consistiria em que nela “o poder
estatal se apresentava de forma alienada diante de seus reais detentores”
(idem, p.49). Portanto, para ele não mais o Estado em si representa alienação,
mas somente a falta de identificação dos “camaradas do povo” com o “Estado do
povo”, causada por um “oportunismo do poder” (idem, p.48). A construção dessa
identificação, o “autogoverno do proletariado”, assim se torna o lema de um
modelo de socialização no qual a estatização do proletariado se apresenta como
abolição do Estado. (31)[xxxi] Já
a denominação de “Estado dos operários e camponeses” ou “estado dos produtores”
deixa claro que as categorias sociais na forma do valor não são abolidas, mas,
pelo contrário, afirmadas expressamente. A existência do produtor imediato como
mônada de sacrifício do trabalho abstrato deve ser generalizada, e isso está
necessariamente ligado a sua submissão ao interesse geral abstrato da
valorização do capital, cujo representante político é o Estado. Dentro desses
parâmetros, não é possível pensar em sua abolição da forma como Marx a procurou
definir em A questão judaica: “somente quando o ser humano individual real
reabsorver em si mesmo o cidadão abstrato e, enquanto ser humano individual, se
tornar um ser do gênero em sua vida empírica, em seu trabalho individual, em suas
condições individuais, … e, em função disso, não separar mais de si a força
social na forma do poder político, somente então a emancipação humana estará
completada” (apud Lenk 1981,
p.120).
O socialismo, devido ao dilema de não encontrar os
pré-requisitos para a abolição do Estado, tentou seguir o caminho inverso e
dissolver o ser humano individual no cidadão abstrato, dissolver o povo no
Estado; com isso, ele foi a expressão mais conseqüente da democracia, na medida
em que “ele estava disposto a tornar realidade a última crença que havia
surgido dentro do sistema partidário europeu” (Nolte 1966, p.184).
Necrológio
Em relação ao populismo do pós-guerra, que para ele foi um
“recurso comum da direita no gerenciamento de crises”, e cuja “estrutura
básica” seria “vestir política de direita com roupas de esquerda” (Kebir 1989
I, p.41), Gramsci traçou o seguinte resumo otimista: “pode-se ver nisso algo do
que Vico chama de ‘esperteza da natureza’, ou seja, um impulso social, que
realiza exatamente o contrário de seu objetivo” (apud Kebir 1989 I, p.42). O populismo é entendido como “um
episódio de ‘educação popular’ indireta” (idem), de uma educação na direção do
socialismo.[xxxii]
Tal “esperteza da natureza” mencionada por Gianbattista
Vico, que Hegel chamou de “astúcia da razão” e que no final das contas nada
mais é que a lógica da “segunda natureza” fetichista e na forma do valor também
conseguiu utilizar o socialismo para seus fins, como tentei demonstrar; um
desenvolvimento que uma contemporânea de Gramsci, a teórica francesa Simone
Weil, compreendeu com clareza: “a história do movimento operário se mostra sob
uma luz cruel e especialmente forte. É possível resumi-la completamente sob a
fórmula segundo a qual o movimento operário demonstrou sua maior força quando
serviu a algo diverso de uma revolução proletária. O movimento operário pode
criar a ilusão de poder enquanto contribuiu para extinguir os resquícios do
feudalismo e instituir a ordem capitalista, seja sob a forma do capitalismo
privado ou do capitalismo de Estado na Rússia” (Weil 1934, p.52).
Tal veredito, que, em sentido amplo, também cabe a Gramsci,
ainda hoje parece ser ininteligível a muitos de seus adeptos. Ele relativiza em
larga medida seu significado teórico para a atual época de crise do sistema
mundial produtor de mercadorias. Pois se compreendermos Gramsci como teórico da
modernização da sociedade burguesa, então isso significa que ele nada nos tem a
dizer sobre uma época em que a modernização capitalista entrou no estágio de
sua dissolução. É verdade que podemos adotar abstratamente sua idéia de que
todo movimento de oposição que almeja a uma transformação fundamental da
sociedade de alguma forma tem que conquistar a “hegemonia social”. No entanto,
se se livra tal idéia de todas as implicações marxistas e de teorias da
modernização que ela ainda tinha em Gramsci (queda da dominação de classe,
criação da unidade nacional, imposição de um “Estado do trabalho” etc.), então
não resta muito mais do que trivialidades. Desta forma, podemos conceder a
Gramsci o merecimento de em suas reflexões ter estado à altura de seu tempo.
Mas, à medida que hoje autores e políticos de esquerda ou de direita se referem
a sua teoria (ou partes dela) de forma positiva, eles apenas comprovam que uma
época de decadência não se liberta automaticamente dos pesos mortos de seu
passado, e que o esforço da crítica permanece necessário.
Literatura Citada
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des Herausgebers, in: Gramsci 1980, p.319 – 386
Notas
[i] É importante frisar que marxismo é
compreendido aqui como ideologia de legitimação do movimento operário e não é
igualado à teoria marxiana, que oferece pontos de apoio para o aparato
sociologista de luta de classes, mas que de forma alguma se resume a ele.
[ii] v. os artigos de Ernst Lohoff e Norbert
Trenkle na Krisis 10, Erlangen 1991. Ernst Lohoff:Das Ende des
Proletariats als Anfang der Revolution: über den logischen Zusammenhang von
Krisen- und Revolutionstheorie [O fim do proletariado como início da
revolução: sobre a concatenação lógica da teoria das crises com a teoria da revolução],
p. 74-116. Norbert Trenkle: Die vergebliche Suche nach dem
unverdinglichten Rest: oder warum das subjektaprioristische Denken in der
Sackgasse des Kulturpessimismus enden muss [ A vã procura pelo resto não
coisificado ou: Por que o pensamento que parte do sujeito como categoria a
priori tem de acabar no beco sem saída do pessimismo cultural], p. 118-139. O
primeiro está disponível em
http://www.krisis.org/1991/das-ende-des-proletariats-als-anfang-der-revolution
[iii] Também aqui ele segue o exemplo de
Engels: “é uma interação de todos esses momentos na qual … o movimento
econômico se impõe” (Engels, apud Perspectiven 1988,
p.68); v. também Kramer 1975, p.72
[iv] Buci-Glucksmann considera isso “a
rejeição de um modelo simples: reprodução/reflexo” da relação
base-superestrutura, como o “economicismo” o defende, “a favor de um modelo
mais (!) dialético, que se apoia no primado do desenvolvimento de classes e da
luta de classes” (idem, p.255)
[v] Nisso já é dada a condição para a
adoção de Gramsci pela direita.
[vi] O “estruturalista marxista” Louis
Althusser, cujo conceito de “aparatos ideológicos do Estado” é compatível com
os “aparatos de hegemonia”, cinqüenta anos após não está nenhum passo à frente:
“os aparatos ideológicos do Estado são necessariamente o lugar e o emprego da
luta de classes, que dá prosseguimento, nos aparatos da ideologia dominante, à
luta de classes geral, que domina a formação social” (Althusser 1977, p.156).
[vii] Assim, por exemplo, Schreiber (1982,
p.130): “a originalidade de Gramsci consiste em ter ele, como primeiro teórico
marxista, examinado a função estatal de hegemonia”, em ter ele encarado o
Estado “como forma”, “na qual a conformidade de grandes partes da população com
o programa político e econômico e com a visão de mundo das classes dominantes é
gerada”.
[viii] É tal pensamento superficial e
sociologista que Gramsci torna instrumentalizável para os mais diferentes
conteúdos. Nesse sentido, não é de surpreender que a idéia de Gramsci da “luta
ideológica” por conceitos possam ser “deturpados” pelo social-democrata Peter
Glotz para uma modernização do capitalismo e pelos novos nazistas em torno de
Alain de Benoist até mesmo no sentido de um “estado étnico”. Se a estrutural
conformidade com o valor de conceitos como “Estado”, “nação” ou “povo”
permanecer incompreendida e a esquerda acreditar que tais conceitos possam ser
“determinados hegemonicamente”, ela, com tal desamparo teórico, nada mais do
que confirma que ela própria é supérflua.
[ix] Entretanto, essa visão sociologista se
encontra até mesmo em Marx e Engels e é defendida explicitamente especialmente
pelo último em certos textos.
[x] “Essa relação de direito, cuja forma é
o contrato, …, é uma relação de vontade, na qual a relação econômica se
reflete.” (Marx 1890, p.99)
[xi] O conceito de “guerra de posições”
Gramsci utiliza aqui como contrário ao de “guerra de movimentos”, como ele
denomina o processo revolucionário na Rússia; v. também o segmento n. 4 e meu
texto.
[xii] O que na Revolução Francesa coube aos
jacobinos, criar “a unidade compacta da nação … moderna” (Gramsci, apud Buci-Glucksmann 1981, p.62),
Gramsci vê como função do proletariado no caso italiano. A fraqueza da
burguesia italiana, sua dependência econômica do Estado e a consequente
ausência de um “partido jacobino” (Gramsci 1980, p.300) fez com que
o Risorgimento (o “renascimento” da Itália, ou seja, o movimento de
unificação de 1815-70) se tornasse “uma revolução sem revolução”, na qual a
burguesia se contentou em ser “dominante” mas não “dirigente”. A consequência
disso seria que o novo Estado italiano “praticamente não era autônomo, pois em
seu interior ele estava sendo corroído pelo papado e pela passividade das
massas”.
[xiii] O quão pouco crítico Gramsci se
comporta em relação ao “bom senso” burguês também se torna claro no seguinte
trecho, onde ele escreve que estaria na ordem do dia se ligar aos “sentimentos
‘espontâneos’ das massas”, desenvolver o “buon senso” (o “núcleo saudável”) da
razão cotidiana, e o modelar de forma “homogênea e coerente” (apud Kramer 1975, p.103). Também
aqui Gramsci afirma o pensamento nacional sem hesitar: “as exigências da
cultura nacional estão ligadas ao conceito de hegemonia” (apud Kramer 1975, p.104).
[xiv] E, pode-se acrescentar, como ele pode
assegurar sua dominação: “em função disso um príncipe inteligente deveria fazer
com que seus cidadãos necessitem dele e do Estado em todos os momentos e sob
todas as circunstâncias: então eles sempre lhes serão fiéis” (Machiavelli 1513,
p.58).
[xv] No caso do “Duce” Mussolini tratava-se
de um verdadeiro “príncipe do povo”. Esse último relampejar de “dominação
carismática” (Max Weber) na época de definitiva racionalização e capitalização
do contexto social colocou ainda mais uma vez um único indivíduo como
forma-fetiche da generalidade abstrata (Hitler e Stalin são fenômenos
análogos).
[xvi] Que a chamada “sociedade civil”, da
forma como ela é invocada há anos no discurso político, de forma alguma marca o
“final da história”, mas em primeiro lugar apenas representa o lado saboroso do
capitalismo desenvolvido e em segundo lugar é um fenômeno histórico limitado,
cujos melhores tempos já se passaram, no mais tardar se tornou uma certeza
banal após os ataques neo-nazistas de Hoyerswerda e Rostock-Lichtenhagen.
Também aqui a crítica prática das circunstâncias confirmou de forma sinistra o
trabalho da crítica teórica.
[xvii] Caponi de Hernandez reconhece “limites
fundamentais” no conceito de partido de Gramsci, mas reduz essa crítica ao
“descuido de Gramsci em apontar regras e procedimentos especiais para a
participação ativa e continuada das massas dentro do partido e do Estado”
(Caponi de Hernandez 1989, p.118). Dessa forma, ela permanece em sua crítica no
âmbito das técnicas de procedimento e deixa de lado a forma do partido em si.
Em Gramsci, já em 1919 surgia o fruto de um desenvolvimento no qual “o papel do
partido na revolução daria suporte à afirmação de que tal aparato de fato
assumiu uma forma rígida, de que o sistema de controle das massas em movimento
se tornou rígido em formas mecânicas de poder imediato, forçando o processo
revolucionário para dentro das formas do partido” (idem). Gramsci era
demasiadamente um revolucionário leninista para enxergar que esse
desenvolvimento obrigatoriamente “resulta de um sistema de controle das massas
em movimento”.
[xviii] A categoria de “intelectual orgânico”
desempenha um importante papel na teoria de Gramsci. Para ele, o significado
dos intelectuais está em que eles são os “transmissores da dominação”, na
medida em que eles garantem “a coesão ideológica e política da sociedade” e
assim realizam “a unidade orgânica, que Gramsci denomina ‘bloco histórico’”
(Kramer 1975, p.101). O próprio Gramsci escreve: “toda classe social, que se
forma porque desempenha um papel essencial dentro do mundo da produção econômica,
cria ao mesmo tempo organicamente … camadas de intelectuais, que lhes dão
homogeneidade e consciência das próprias funções não somente no âmbito
econômico como também no político e social” (Gramsci, apud Schreiber 1982, p.56). Segundo Gramsci, os intelectuais
têm portanto “a função de organizar a hegemonia social de um grupo e sua
dominação estatal” (apud Buci-Glucksmann
1981, p.46), no que há de se fazer a diferença entre “os intelectuais orgânicos
de um determinado grupo, o grupo dominante e os intelectuais tradicionais”
(idem, p.49). Sob os últimos devem ser compreendidos “os intelectuais orgânicos
da classe em declínio”, e é “uma das características mais evidentes de qualquer
grupo que está a caminho de se tornar o grupo dominante” que ele inicie “a luta
pela assimilação ‘ideológica’ e conquista dos intelectuais tradicionais” (idem,
p.58).
[xix] Para Gramsci, o Estado se tornou “no
imperialismo, enquanto estágio mais alto do capitalismo”, o “único proprietário
do meio de trabalho” e desta forma erigiu “um sistema de fábricas” (apud Buci-Glucksmann 1981, p.127)
que só está à espera de ser transferido das mãos da burguesia, a “classe
morta”, para as mãos do proletariado.
[xx] Os fascistas dão conta desse
desenvolvimento ao definir a Itália como “nação proletária” e assim transferir
o conceito de exploração, para utilizar as palavras de Ernst Nolte, da luta de
classes para o âmbito da luta entre nações: “o conceito de Marx (deve) ser
aplicado à luta da Itália contra os outros Estados capitalistas …, não à luta
do proletariado italiano contra o capitalismo italiano” (Kebir 1989, p.43),
assim o tenor dos fascistas, quando eles ainda eram marxistas dentro do Partido
Socialista. A expulsão de Mussolini do PSI se deu em 1914 em função de sua
crítica à postura de “neutralidade absoluta” do partido em relação à guerra,
uma posição pela qual ironicamente Gramsci o defendeu em sua estréia jornalística.
[xxi] Com o liberalismo, a generalidade
abstrata da forma-valor já está colocada como a priori, e enquano tal é
totalitária, pois é pressuposta a qualquer conteúdo político. Entretanto, ela
teve que se generalizar através de impulsos históricos específicos e por
ideologias correspondentes. Em função disso, o fascismo e o socialismo contêm o
liberalismo dentro de si como momento suspenso, apesar de toda a oposição.
[xxii] Para Gramsci, “o moderno produtor tem
que ser primeiramente ‘educado’” (Kebir 1989 II, p.57); uma educação, que se
deixa descrever com os conceitos de Max Weber de “ética protestante de trabalho
e de modo de vida racional” (idem, p.56), e que, “nos países protestantes, ao
contrário dos católicos e ortodoxos”, se deu de uma forma que “Gramsci chamaria
de ‘orgânica” (idem), enquanto que na Itália ainda resta por realizar uma
reforma como a protestante” (idem, p.57). Essa reforma Gramsci liga ao
fordismo.
[xxiii] A revista Ordine Nuovo (Nova
Ordem) era o órgão dos comunistas dos conselhos populares em torno de Gramsci e
Togliatti na Turim dos anos 20, que em função das fábricas da Fiat era o
bastião do então movimento operário.
[xxiv] Nesse sentido, há de se concordar com
Christine Buci-Glucksmann quando ela se volta contra uma “divisão entre os
escritos do período militante (até 1926) e os Cadernos do Cárcere” (Buci-Glucksmann 1981, p.16).
[xxv] Aqui seria o caso de perguntar, se
não há uma certa razão nas teses defendidas por Ernst Nolte na “briga dos
historiadores” de uma comparabilidade do “assassinato de raça” nazista com o
“assassinato de classe” bolchevista. Entretanto, essa razão não se dá em função
da tendência evidente à relativização dos crimes nazistas com fins à promoção
de identidade nacional por idéias como as do arquipélago Gulag como um
“antecessor lógico e fático” de Auschwitz, ou dele como um “crime asiático”
(Nolte 1986, p.36), mas da analogia entre o arquipélago Gulag e o extermínio
dos kulaks e o extermínio dos judeus como momentos bárbaros do processo de
totalização da socialização na forma do valor. O nazismo como o bolchevismo se
apresentavam aos agentes envolvidos como expressão da superação revolucionária
do capitalismo, mas que nada muda no fato de que suas ações e suas construções
ideológicas possam ser decifradas como reflexos afirmativos da crise de
modernização capitalista, a qual – sob condições diversas – fez surgir formas
de superação pseudo-revolucionárias. O potencial revolucionário, sob o qual as
massas em movimento se apresentavam, necessitava de uma válvula de escape e
essa função era desempenhada pelos conceitos de “raça” e “classe”. Eles
possibilitaram definir aquele “inimigo objetivo”, o qual para Hannah Arendt é
um conceito central da forma de dominação totalitária. Os “racialmente
inferiores” são “inimigos objetivos” da sociedade racial, assim como as
‘classes moribundas’ e seus representantes … são inimigos objetivos da
sociedade sem classes e ajudantes objetivos da burguesia” (Arendt 1966, p.654).
Assim como a famosa declaração de Karl Lueger, exemplo de Hitler – “quem é
judeu sou eu que determino” – já possibilitava prever que, atrás da aparente
concretitude dos conceitos de “raça” e “classe”, em última instância há a
arbitrariedade abstrata da forma-valor – indiferente a qualquer conteúdo, ela
possibilita uma relação de identidade essencialista, como a que está na base de
conceitos como “raça” e “classe”, apenas através da aniquilação do heterogêneo.
Nos “judeus”, “ciganos”, “kulaks” ou na “burguesia”, tal abstração parecia ter
se tornado palpável e à qual a consciência cotidiana, com sua exigência de um
“culpado” imediato, é necessariamente insuportável, e a qual, entretanto,
estava obrigada a reproduzir essa exigência no processo da aniquilação, o que
se expressou em que os nazistas como os bolcheviques desumanizaram suas vítimas
naqueles estereótipos cuja aniquilação era apenas uma conseqüência lógica. A
lógica abstrata do valor é nisso a lógica da aniquilação, a qual reúne em si fenômenos
aparentemente contraditórios e, desta forma, permite a singularidade de
Auschwitz como a realização de suas possibilidades mais gerais. Os traços
“asiáticos” que Nolte crê ter descoberto em Auschwitz se mostram muito mais no
arquipélago gulag, que fica muito atrás daquela modernidade das fábricas da
morte nazistas, a qual deve se apresentar ao racionalismo ocidental como um
irracionalismo inexplicável (a questão de até que ponto a aniquilação dos
kulaks, ligada à coletivizarão forçada, tem traços da política populacional
nazista, o que recentemente é analisado por Aly/Heim, deveria ser tratado
separadamente).
[xxvi] Uma paralisia que se reflete no
paternalismo da relação entre “líder” (“Führer”) e massa; apesar de os
“líderes” à la Hitler, Stalin e Mussolini se apresentarem como os últimos
indivíduos em uma sociedade coletivista, eles são somente projeções
desindividualizadas das necessidades infantilizadas das massas, o que também explica
o grotesco culto à personalidade que surge ao seu redor.
[xxvii] Karl Lewin escreve em 1921 que “o
taylorismo e também a moderna psicologia industrial … (poderiam) servir a um
sistema socialista, porque ela concede às pessoas suas respectivas funções não
devido a sua educação, dependente da classe, mas devido a sua capacidade”
(Priester 1989, p.15); e Otto Bauer por um lado vê surgir na União Soviética
“um novo e terrível despotismo … que subjuga os indivíduos em todas as
relações de sua vida e não deixa ao indivíduo mais nenhuma esfera de ação fora
do Estado” (apud Albers 1983,
p.75), mas por outro lado crê reconhecer nesse “despotismo de uma minoria
progressista uma necessidade transitória, um instrumento temporariamente
imprescindível do progresso histórico” (idem, p.171). O governo de
Mussolini, por seu lado, havia “dado muito valor” a que Roma “fosse escolhida
como sede do terceiro congresso mundial dos ‘tayloristas’” (Bologna 1989, p.25).
[xxviii] Nesse contexto, Trotsky faz uma
formulação, da qual não é possível saber se trata-se de ingenuidade ou cinismo:
“conosco, a coação do poder dos trabalhadores e camponeses é realizada em nome
dos interesses das massas trabalhadoras” (apud Abosch
1984, p.65). Em Lenin isso é formulado da seguinte forma: “no Estado
capitalista, o capitalismo de Estado significa que o capitalismo é reconhecido
e controlado pelo Estado em proveito da burguesia, contra o proletariado. No
Estado proletário o mesmo ocorre em proveito dos trabalhadores” (apud Rosenberg 1933, p.182).
[xxix] “Na Europa, as diferentes tentativas
de introduzir alguns aspectos do americanismo (sob esse nome Gramsci identifica
o “american way of life”) e fordismo partem da antiga camada plutocrática, que
gostaria de reconciliar o que permanece inconciliável até a prova do contrário:
a antiga estrutura social-democrática anacrônica e as altamente modernas formas
de produção e modo de trabalho, das quais a indústria de Henry Ford representa
o tipo perfeito americano” (Gramsci, apud Perspektiven 1988, p. 60). Da mesma
forma, Gramsci compreende o fascismo como uma “revolução passiva”: “dentro das
relações sociais imediatas italianas, isso (a “revolução passiva” do fascismo;
R.B) poderia ser a única possibilidade de continuar a desenvolver as forças
produtivas da indústria sob a liderança das classes tradicionalmente dominantes,
em concorrência às indústrias avançadas dos países com um monopólio de matéria
prima e imponentes massas de capital acumulado” (apud Albers 1983, p.63).
[xxx] Nesse contexto, logo Gramsci vê a
necessidade de refletir sobre a “‘função policial progressista’, no sentido dos
interesses históricos do movimento operário” (Albers 1983, p. 82), a qual deve
ser exercida pelo partido comunista tornado dominante.
[xxxi] Infelizmente, aqui não há mais a
possibilidade de honrar o antepassado fático do politicismo marxista, Jean
Jacques Rousseou. Eu gostaria de me limitar a uma menção a Lucio Colletti, que
ressaltou que “no que toca a teoria ‘política’ em sentido estrito, Marx e Lenin
nada acrescentaram a Rousseau, a não ser a análise … das ‘bases econômicas’
para a morte do Estado” (Colletti 1977, p.130). Colletti, entretanto, não tem
olhos para o Marx “crítico do fetichismo”, que de forma alguma se resume à
questão da luta de classe.
[xxxii] O quão pouco crítico Gramsci é em
relação ao populismo se mostra em que “o conceito de populismo, dotado de um
ponto de interrogação positivo, … é invertido para o negativo quando
relacionado ao fascismo” (Kebir 1989, I, p.42). Em epígonos como Wieland
Elfferding falta até mesmo o dubioso ponto de interrogação: ali é exigido de
forma despudorada e estúpida o “populismo de esquerda” (Perspektiven 1988, p.34), o qual deve fazer “propostas de esquerda”
para conceitos como “nação”, “povo” ou “pátria” (idem, p.35) (vide o artigo de
Elfferding em “Wiederspruch” n. 13/1987).
Tradução de Pedro Lavigne
Original: “Die wundersame Renaissance des Antonio Gramsci”
Tradução publicada em Sinal de Menos
Original: “Die wundersame Renaissance des Antonio Gramsci”
Tradução publicada em Sinal de Menos
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