
Dos Aparelhos
Ideológicos de Estado ao materialismo aleatório
Althusser retornou com regularidade ao tema do Estado e da
política desde a publicação de Politics
and History. Montesquieu, Rousseau, Marx (1972) e em diversas ocasiões
desenvolveu sua teorização sobre o Estado, estabelecendo um diálogo com
Maquiavel, Rousseau, Marx, Lenin e Gramsci. Suas contribuições mais
significativas tratam da contradição e da sobredeterminação em conjunturas revolucionárias;
do papel do Estado na reprodução da classe dominante, com ênfase especial nos
papéis dos Aparelhos Repressivos de Estado e nos Aparelhos Ideológicos de
Estado; da ideologia e da sujeição; do Estado como um aparelho, uma máquina e
um grupo de homens armados; e das condições conducentes a uma forma durável de
governo. Embora Althusser tenha, por diversas vezes, elogiado a abordagem
materialista histórica do Estado desenvolvida por Gramsci, ele não levou
adiante uma leitura sintomática do trabalho do escritor sardenho sobre o assunto.
No máximo, ele citou a distinção que Gramsci estabelece entre a sociedade civil
e a sociedade política e a importância das instituições e das organizações civis
para a reprodução da dominação de classe nos campos econômico, político e
ideológico. No outro extremo, acusou Gramsci de um “historicismo absoluto” e,
em uma ocasião importante, rejeitou na íntegra a discussão de Gramsci sobre a
hegemonia e sua recepção no pós-guerra (ver a seguir). Isso sugere que, em vez
de ler os argumentos de Althusser sobre o Estado como se eles tivessem sido derivados
de Gramsci, seria melhor lê-los como uma alternativa direta e crítica a ele. Na
verdade, embora haja algumas semelhanças superficiais e insignificantes, suas
diferenças são profundas e fundamentais.
Para nossos propósitos, o comentário mais positivo de
Althusser sobre Gramsci está em A favor
de Marx, onde ele argumenta que ainda faltava ao marxismo uma teoria
adequada sobre a especificidade e a eficácia das superestruturas e que, depois
de Marx e de Lenin, apenas Gramsci havia realmente elaborado ese aspecto, antes
do próprio Althusser.1 Ele também comenta favoravelmente o conceito ampliado de
Gramsci do intelectual2 e argumenta que, para uma compreensão real da
sobredeterminação dos fatores econômicos, era necessário desenvolver “a teoria da eficácia específica das
superestruturas e de outras ‘circunstâncias’”, baseando-se na “elaboração da teoria da essência peculiar
dos elementos específicos da superestrutura”.3 Uma nota de pesquisa sobre a
ideologia e os AIEs, escrita em 1969 como parte de seu trabalho mais extenso
sobre a reprodução, amplia o comentário anterior:
“Ao que eu saiba, Gramsci é a única pessoa que avançou na direção que decidi tomar. Ele teve a ideia “singular” de que o Estado não poderia ser reduzido aos aparelhos estatais (repressivos), mas incluía, como ele mesmo disse, um certo número de instituições da ‘sociedade civil’: a igreja, escolas, sindicatos etc. Infelizmente, Gramsci não sistematizou suas intuições, que permaneceram na forma de notas penetrantes, mas parciais.”4
Em outra ocasião, Althusser incluiu Gramsci entre os poucos
marxistas que, como ele próprio, reconhecera que a classe trabalhadora precisa
da filosofia na luta de classes.5 E ainda, em dois ensaios posteriores sobre
Maquiavel, ele notou que Gramsci havia interpretado corretamente a exigência do
florentino por um “novo príncipe num novo principado” para unificar a Itália
sob um estado nacional republicano.6
A despeito desses elogios às reflexões de Gramsci sobre o
materialismo histórico e a luta de classes e sua contribuição para a filosofia,
Althusser as retoma apenas gestualmente ao desenvolver sua própria teoria sobre
os aparelhos de Estado, a ideologia e a luta de classes. Isso se deve
provavelmente a sua visão de Gramsci como alguém que desempenhara um papel
importante na esquerda no que se refere ao desenvolvimento de um historicismo e
humanismo revolucionários, sendo, portanto, um antagonista da afirmação de
Althusser de que o marxismo deveria ser anti-humanista e anti-historicista.7 Embora
ele tenha sido cuidadoso ao distinguir entre, de um lado, sua crítica às falhas
de Gramsci no emprego do materialismo dialético e, de outro, o reconhecimento
de suas grandes contribuições ao materialismo histórico,8 Althusser acaba
concluindo que Gramsci “tende a fazer com que a teoria da história e o
materialismo dialético coincidam com o materialismo histórico, embora elas
constituam duas disciplinas distintas”.9 Segundo sua visão, Gramsci confunde o
desenvolvimento da filosofia e da história real, não consegue fazer a distinção
entre ideologia e ciência (tratando a teoría marxista, portanto, como apenas
outra visão de mundo), trata o marxismo como expressão direta de um período
histórico particular e, logo, como parte da superestrutura, dissolvendo,
portanto, a prática teórica na prática em geral.10 Esse ataque insensato e
errôneo é típico da rejeição altiva de Althusser de quase todas as escolas do
marxismo que diferem de sua própria versão, qualquer que seja a que ele adote
de tempos em tempos.11 Isso significa que Althusser precisava desenvolver uma
teoria do Estado, da ideologia e do Aparelho Ideológico de Estado em sua
própria abordagem do materialismo dialético, para não se contaminar com o
“historicismo absoluto” que ele identificava em Gramsci.12 Assim, ao comentar sobre
as aparentes semelhanças entre a teoria da hegemonia de Gramsci e suas próprias
análises dos AIEs, ele escreveu:
Pareceu [aos meus críticos] que aquilo que eu sugeria já havia sido dito, e de modo muito melhor, por Gramsci (que realmente levantou a questão da infraestrutura material das ideologias, mas dando a elas uma resposta mecânica e economicista). A ideia que prevalecia era a de que eu estava discutindo a mesma coisa, no mesmo registro. Na realidade, parece-me que o trabalho de Gramsci não tem em vista o mesmo objeto... Gramsci nunca fala sobre os Aparelhos Ideológicos de Estado; seu termo é “aparelhos hegemônicos”. Isso deixa uma questão por responder: o que produziria, nos aparelhos de Gramsci, o que ele chama de efeito de hegemonia? Em resumo, Gramsci define seus aparelhos nos termos de seu efeito ou resultado, a hegemonia, que também é muito mal definida. Da minha parte, procurei definir os AIEs nos termos de suas “causas motoras”: a ideologia. Além disso, Gramsci afirma que os aparelhos hegemônicos são parte da “sociedade civil” (que constitui todo o conjunto deles, ao contrário da sociedade civil tradicional, que é formada pela sociedade menos o Estado), sob o pretexto de que eles são “privados”.13
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Notas de este
extracto
1 Louis Althusser. For
Marx. Londres: New Left Books, 1969 [1965], p.114.
2 Ibidem, ver nota p.105. Cf. também Louis Althusser e
Etienne Balibar. Reading Capital. Londres: New Left Books, 1970 [1968], p.128.
3 Louis Althusser. Theory, Theoretical Practice and
Theoretical Formation: Ideology and Ideological Struggle. Philosophy and
the Spontaneous Philosophy of the Scientists, and other Essays. Londres, Verso,
1990 [1965], p.113-4, em itálico no original.
4 Idem. Ideology and
Ideological State Apparatuses. Lenin and Philosophy and Other Essays. Londres:
NLB, 1977 [1970], nota p.281, traduzido do alemão por Jessop. Cf. também Louis
Althusser. The Transformation of Philosophy. Philosophy
and the Spontaneous Philosophy of the Scientists, and other Essays. Londres, Verso, 1990 [1976],
p.257; e Louis Althusser. Marx in his
Limits. Althusser, Louis. The
Philosophy of the Encounter. Londres, Verso, 2006 [1978].
5 Idem. Essays in Self-Criticism. Londres:
Verso. 1976 [1973], p.37.
6 Idem. Machiavelli and us. Londres,
Verso, 2002 [1972-86].
7 Althusser e Balibar, op. cit., p.119-20.
8 Ibidem, p.126.
9 Ibidem, p.130.
10 Ibidem, p.130-7.
11 Gregory Elliott. Althusser:
the Detour of Theory. Londres. Verso, 1987, p.41-5, 131; para uma rejeição bem-humorada
do epíteto de historicista usado contra Gramsci, ver Christine Buci-Glucksmann.
Gramsci and the State. Londres: Lawrence & Wishart, 1980 [1975], p.15-6, 49
e passim.
12 Para uma leitura alternativa de seu historicismo, ver
Esteve Morera. Gramsci’s Historicism: a
Realist Interpretation. Londres: Routledge, 1990.
13 Louis Althusser. Marx in his Limits, op.cit, p.138-9, em itálico no
original.
Nota del Editor
