
Ele esclarece: haveria que tratar o marxismo não apenas como meio de conhecer ou de transformar a história, mas também como produto social e histórico. Diz mais: seria necessário pensar o marxismo como movimento que se desdobra na história de forma contraditória, quer dizer, como unidade tensa entre diferenças.
A primeira das duas recomendações contém o que me parece ser o espírito com que hoje devemos tratar os textos de Marx e Engels, de seus intérpretes e seguidores: não como artigos de fé, mas como meios excepcionais mas limitados, humana e historicamente limitados, de conhecer e transformar o mundo.
E precisamente por serem limitados eles não demandam apenas
interpretação, mas também um trabalho de reelaboração teórica. Uma reelaboração
que dê maior consistência ao legado teórico de Marx e Engels e o renove para
ajustá-lo aos problemas do presente. Estas tarefas construtivas impõem uma
ruptura necessária com o dogmatismo. Mais: elas implicam não só dialogar, mas
também dispor-se a aprender com as ciências sociais não marxistas.
No que diz respeito ao caráter dialeticamente contraditório
do marxismo, Gouldner constrói dois tipos de interpretação da teoria que,
segundo ele, vêm polarizando sua história, o marxismo científico e o crítico. A
construção é habilidosa e, embora alguns autores e atores ofereçam certa
dificuldade de classificação, os tipos mencionados são úteis para pensar os
problemas da teoria marxista, inclusive os suscitados pelo tema que nos ocupa
hoje. Gouldner mostra, com efeito, que o marxismo se polariza a propósito de
vários temas, o que mencionarei de forma breve e incompleta, apenas para ser
bem entendido. Em relação à ciência, por exemplo, a vertente científica do
marxismo entende que a realidade é governada por leis naturais
independentemente da vontade dos homens; ao invés, tais leis a determinam. A
ciência marxista seria definível mais como uma construção teórica que por
referência empírica, embora haja pouca precisão tanto sobre o método como sobre
o seu produto. No polo oposto, a vertente crítica do marxismo entenderia como
problemáticos quaisquer sistemas de pensamento e a própria ciência. O marxismo
visaria desmistificá-los. Qualquer teoria, inclusive o marxismo, envolveria
sempre uma mirada perspectiva sobre os processos. E os ângulos diversos de
mirá-los e interpretá-los decorreriam dos diferentes vínculos entre as teorias
e a sociedade.
Fica claro, pois, que para Gouldner os marxistas científicos
entendem haver um fosso intransponível entre ciência e ideologia, ao passo que
os críticos percebem as duas como socialmente ancoradas, havendo conhecimento
verdadeiro também na ideologia, conhecimento esse a ser desentranhado pela
ciência.
Em relação ao papel da capacidade dos homens intervirem
ativamente no processo histórico, o marxismo crítico enfatizaria que os homens
fazem a história, ao passo que o científico sublinharia que a fazem, sim, mas
dentro de condições determinadas, independentes de sua vontade. Coerentemente,
o marxismo científico daria ênfase ao valor da resistência e da paciência
políticas, à proteção dos quadros revolucionários até a chegada da “hora
certa”, e teria confiança nas oportunidades objetivas que as contradições
possam vir a criar. No polo oposto, a vertente crítica se recusaria a se
submeter “ao que existe”, valorizando a coragem, atribuindo ao elã
revolucionário capacidade de compensar o déficit das “condições objetivas”. Não
me alongarei mais neste sumário. São reconhecíveis, facilmente, nos polos
científico e político, autores, atores e obras: de uma parte Althusser, de
outra o jovem Lukács; em um polo Kautsky, em outro Thompson; o Marx de O
capital versus o do Dezoito Brumário de Luís Bonaparte; e assim
por diante.
Entre os temas em que Gouldner identifica polarizações entre
científicos e críticos, para nós interessa um em particular, aquele que diz
respeito ao modo de produção da história. Em relação a isso haveria os que
concebem a história principalmente como fruto das contradições entre forças
produtivas e relações de produção; ou, ao invés, os que acreditam que ela
resulte da luta de classes. Trata-se, é claro, não de opções exclusivas, mas de
diferentes ênfases. Na realidade autores representativos de ambos os polos
esforçaram-se para demonstrar que não “esqueceram” o seu oposto. Quem não se
lembra dos malabarismos intelectuais e linguísticos de Poulantzas, em As
classes sociais no capitalismo de hoje, para “demonstrar” que as estruturas
econômicas, políticas e ideológicas são, a um só tempo, “lutas de classe”? Não
faltarão exemplos como este, de um ou de outro lado da trincheira.
Esta polarização entre contradições sistêmicas e conflito de
classes, embora sirva bem ao argumento de Gouldner, perde um elemento-chave que
nos pode levar para além das antinomias. Com efeito, não importa o polo que
adotemos no combate: se o da ênfase nas contradições entre relações de produção
e forças produtivas ou o da ênfase nas lutas de classe. O que é mais problemático
no marxismo não é a escolha do lado a enfatizar; o problema central está na
relação entre sistema contraditório e lutas de classes, entre estrutura e
história.
Sobre isso há um quase silêncio teórico. E esta é a questão
central que pretendemos discutir neste artigo.
Sublinho, desde logo, a centralidade não só teórica, mas
também política desta relação. É da conexão entre as contradições sistêmicas do
capitalismo e o conflito de classes que depende tanto a revolução como o
conformismo do sujeito revolucionário.
Recorde-se que para Marx o núcleo das contradições do
capitalismo está na contraposição entre a socialização cada vez maior da
produção capitalista e a apropriação privada do excedente produzido. Esta
contradição fundamental é inerente ao processo de reprodução ampliada do
capital e não depende das crises econômicas que atingem periodicamente o
sistema. Pelo contrário, para Marx as crises são apenas soluções violentas e
momentâneas para as contradições existentes (K, III, p. 262) que restabelecem passageiramente
o equilíbrio do sistema.
O mais importante é que a contradição fundamental do
capitalismo gera contradições secundárias entre, de um lado, a estrutura de
classes produzida no processo de reprodução do capital e, de outro, as relações
mantidas pelos agentes sociais nas principais esferas econômicas por meio das
quais ocorre a própria reprodução. Ao passo que entre as classes sociais se
tecem fios invisíveis que mantêm o proletariado escravizado à burguesia, no
plano da circulação de mercadorias regem relações de liberdade entre os
agentes-proprietários de mercadorias, não importa serem tais mercadorias a
força de trabalho ou os objetos de consumo de operários ou capitalistas. Cada
um deles compra ou vende suas mercadorias livremente, conforme sua
conveniência. Na medida em que os seus salários, porém, são transformados em
bens de consumo e, por fim, consumidos, os trabalhadores veem-se obrigados a
manter-se no emprego ou a vender novamente sua força de trabalho aos
capitalistas, não importa qual deles. Fecha-se assim o círculo que escraviza
socialmente o proletariado à burguesia.
Ademais, embora no plano da circulação, as mercadorias sejam
rotineiramente trocadas pelo seu valor, sendo a igualdade de seus valores a
condição para a troca e a troca um fator de igualação entre os proprietários de
mercadorias, tudo muda de figura no processo de reprodução ampliada do capital.
Nesta reprodução, a burguesia — ainda que possa ter iniciado o processo de
produção com base em dinheiro obtido com o próprio trabalho — extrai
constantemente dos trabalhadores contratados mais valor que o que paga por sua
força de trabalho. Ao reinvestir o resultado no processo de produção,
transforma a mais-valia extraída em capital e, depois de umas tantas voltas, o
seu capital inicial nada terá de trabalho próprio, transformando-se o capital
em mais-valia acumulada, em massa de trabalho alheio, expropriado e acumulado,
que segue sugando trabalho vivo. Portanto, ao passo que há igualdade entre os
mercadores, existe desigualdade entre as classes. Concluindo: o fundamento da
igualdade e da liberdade entre os agentes na esfera da circulação é a
escravidão e a desigualdade entre as classes no processo de reprodução.
Como tais contradições se traduzem em lutas de classe? Por
que tais contradições não têm até hoje se transformado em luta revolucionária
que supere o capitalismo? Quais os obstáculos que bloqueiam a ação
revolucionária?
Estranhamente, os marxistas avançaram mais, ainda que de
modo muito insuficiente, na explicação para a falta de impulso revolucionário
do que no exame das condições de contestação da ordem burguesa pelas classes
subalternas.
A tradição marxista tem atribuído, de forma geral, à
ideologia dominante a frustração das expectativas de que a experiência da
exploração fabril, do empobrecimento relativo da classe operária e das próprias
lutas operárias se convertesse na formação de uma classe capaz de lutar não
apenas por objetivos imediatos, mas também contra o sistema, em favor de uma
nova sociedade.
A ideologia dominante tem sido concebida, porém, de modos
muito distintos no interior do marxismo. Como sugeriu Lockwood (1992), é
possível distinguir no marxismo três concepções de ideologia e, com isso, três
explicações para a debilidade da luta revolucionária nos países capitalistas
avançados.
Uma dessas concepções deriva de A ideologia alemã e
tem seu complemento em O que fazer, de Lenin. As classes são portadores
das ideologias. Entretanto, como os operários são oprimidos, econômica e também
ideologicamente, as classes dominantes monopolizam tanto os meios de produção
material como grande parte dos meios de produção intelectual. Escrevem Marx e
Engels em A ideologia alemã: “os indivíduos que compõem a classe dominante
[...] regulam a produção e a distribuição das ideias de sua época”. Assim, é a
desigualdade de meios de produzir e distribuir ideias que dificultaria ao
operariado experimentar sua experiência como “exploração” e convertê-la em
alavanca para a constituição de uma classe revolucionária. Por isso é que, para
Lenin, os operários — dominados pela ideologia burguesa — não conseguiriam por
si sós ultrapassar uma consciência sindicalista. Para irem além, necessitariam
da intervenção de uma vanguarda revolucionária.
A segunda concepção não vincula a ideologia às classes nem
entende ser a subordinação da consciência operária o fruto da sua doutrinação
pela burguesia. Ao invés, entende ser a ideologia — cujo núcleo é o fetichismo
da mercadoria — o resultado não intencional da dominação do sistema mercantil
de produção. Os agentes deste imaginam serem as relações que mantêm entre si
relações entre coisas, mercadorias, cujos valores de troca parecem derivar de
sua natureza; inversamente, imaginam que as relações entre os objetos — as
mercadorias — têm virtudes sociais. O fetichismo não se fixa só nas
mercadorias, mas no conjunto das relações capitalistas: na forma-salário, na
forma-lucro, na forma-juro etc. Em todos estes casos, produz-se a inversão. A
sociedade mercantil se naturaliza e veda aos agentes a percepção de que ela
resulta da exploração entre as classes. Por ela o salário parece ser o valor do
trabalho e não da força de trabalho; o lucro e o juro parecem ser,
respectivamente, a remuneração do trabalho do empresário e do dinheiro
emprestado, e não quotas-parte do trabalho excedente gerado pela exploração
capitalista. Entendendo-se desta forma a ideologia inerente ao capitalismo,
torna-se difícil entender até como os operários superam o seu individualismo e
se organizam como atores coletivos para reivindicar e protestar. De qualquer
maneira, como no caso anterior, as associações operárias submetidas ao
fetichismo mercantil tenderiam a limitar suas demandas aos salários e às
condições de trabalho.
Estas duas concepções de ideologia, além de
oferecerem explicação para as dificuldades da ação revolucionária,
têm a característica comum de focalizarem sua atenção nos obstáculos cognitivos para
o surgimento de uma consciência revolucionária no proletariado (LOCKWOOD, 1992,
p. 321). Tais obstáculos, se supõe, poderiam ser ultrapassados por um
entendimento correto, científico, do funcionamento do sistema.
A terceira concepção de dominação ideológica, a da
hegemonia, tem características bem diferentes das anteriores. Ela refere-se a
um sistema cultural dominante que cimenta a dominação de uma coalizão de
classes sobre o conjunto da sociedade, constituindo um “bloco intelectual e
moral”. Trata-se de um sistema de valores e crenças cuja autoridade se deve
principalmente ao seu estabelecimento espontâneo como ideias dominantes. A
hegemonia não se refere, pois, apenas a um sistema cognitivo. Trata-se de crenças
não-racionais (note-se não-racionais mas, de forma alguma, irracionais),
valores, compromissos morais dificilmente “corrigíveis” pelo conhecimento
científico. A hegemonia envolve tornar dominante certo modo de viver e de
pensar, difundindo uma concepção de realidade através da sociedade em todas as
suas manifestações institucionais e privadas, conformando com seu espírito todo
o gosto, moralidade, costumes, religião e princípios políticos, e todas as
relações sociais (WILLIAMS, 1960). Internalizada pelas massas, a hegemonia se
torna parte do “senso comum”.
Esta concepção de hegemonia, muito próxima à noção de
“consciência coletiva” de Durkheim — como já notaram Anderson (1976) e Pizzorno
(1972) — tem tido larga difusão entre os marxistas. Ela contém grande apelo
porque, de um lado, dá mais complexidade à noção de ideologia de classe
presente na Ideologia alemã e, de outro, dá mais profundidade
sociológica à teoria do fetichismo, enriquecendo a ideia de que a ideologia
está incorporada às práticas cotidianas.
Ocorre que, pensada deste modo genérico, a noção de
hegemonia apresenta, como bem aponta Lockwood, uma fraqueza fundamental. Ela
tem sido incorporada em termos tão pouco específicos que as explicações da ação
de classe feitas com sua ajuda tendem a se tornar uma forma de determinismo
cultural. Assim, “o conceito gramsciano de hegemonia tem possibilitado a muitos
teóricos marxistas, preocupados em explicar a ausência de revolução proletária,
adotarem [...] uma visão hiperintegrada de sociedade e uma visão
hipersocializada dos indivíduos” (LOCKWOOD, 1992, p. 337), numa interpretação
mais-do-que-parsoniana de Durkheim.
Contra esta tendência, haveria que ressaltar e
explorar sociologicamente a referência do próprio Gramsci à consciência
contraditória do homem ativo de massa. Diz ele:
O homem ativo de massa tem uma atividade prática, mas não tem consciência teórica da sua atividade prática; esta, não obstante, envolve um entendimento do mundo no processo mesmo de transformação. Sua consciência teórica pode mesmo estar historicamente em oposição à sua atividade prática. Podemos quase dizer que ele tem duas consciências teóricas (ou uma consciência contraditória): uma está implícita na sua atividade e em realidade o une a seus companheiros-trabalhadores na transformação prática do mundo real; e outra, superficialmente explícita ou verbal, que ele herdou do passado e absorveu de forma acrítica. Mas essa concepção verbal não é sem consequências. Ela mantém unido o grupo social, influencia a conduta moral e a direção da vontade com eficácia variável, muitas vezes de forma poderosa, a ponto de produzir uma consciência tão contraditória que impede qualquer ação, qualquer decisão ou escolha, gerando uma condição de passividade moral e política (GRAMSCI, 2004, p. 103).
O ponto a sublinhar nesse passo é que a consciência
dominante — superficialmente explicita ou verbal — tem eficácia variável para
influenciar a ação e dirigir a vontade das massas.
Sublinhe-se, de passagem, que do ponto de vista histórico é
óbvio que a hegemonia não é plenamente eficaz. Com efeito, se a eficácia fosse
tão grande, como explicar a atividade dos movimentos sociais nos períodos de
exercício de hegemonia? Como explicar as rebeliões?
Ainda assim, teoricamente é muito importante o
reconhecimento do caráter variável desta eficácia. No entanto, é insuficiente
identificar, como Gramsci, o caráter meramente “superficial” e “passivo” do
assentimento das massas à hegemonia e a eventual conversão deste
consentimento em adesão a um outro princípio hegemônico, sempre latente. Isso
não é o bastante para uma ciência social que pretenda identificar não só as
condições de persistência, mas também de mudança das formações sociais. Deste
ângulo, o reconhecimento de que a hegemonia tem eficácia variável é
fundamental apenas porque serve de estímulo para pesquisar o princípio
desta variação e, mais ainda, as condições em que os agentes
abandonam sua passividade e se engajam no protesto coletivo.
Voltamos, pois, renovados, ao nosso ponto de partida: como,
sob quais condições, as contradições sistêmicas se traduzem em conflitos de
classe? Em que circunstâncias e por quais meios as contradições sistêmicas
conseguem se traduzir em conflitos de classe? Em que situações ocorrem
rebeliões? Em quais revoluções?
Seguramente, o estudo dos textos dos teóricos marxistas pode
cumprir um papel importante na investigação do problema. No entanto, creio que
se perderia muito, casonão fossem aproveitados os estudos não marxistas
contemporâneos sobre o modo de vida das classes populares e as suas formas de
mobilização e protesto coletivo.
Creio que uma parte da literatura sociológica não-marxista
contém elementos muito importantes para uma investigação do tipo que
mencionamos. Refiro-me, especialmente, a alguns conceitos e análises contidos,
por uma parte, na obra de Pierre Bourdieu e seus colaboradores e, por outra,
nos trabalhos sobre movimentos sociais estudados na perspectiva do “processo
político”.
Em relação à obra de Bourdieu e seus discípulos, há dois
elementos importantes a assimilar, um metodológico e outro conceitual. Embora a
teoria marxista do direito, desenvolvida por Pashukanis, e o conceito de
fetichismo mercantil envolvam a imbricação entre práticas sociais e
significação, a ênfase dada por Bourdieu no caráter relacional, prático e
simbólico das relações entre classes sociais deverá ser incorporada em uma
teoria que procure articular estrutura e práticas. De forma complementar,
conviria, como já sublinhei em outra oportunidade, incorporar de Bourdieu o
conceito de habitus.
A noção de habitus de classe permite, melhor que
de outros modos, superar a ideia, presente no marxismo, de “classe em si” (e
sua correlata “para si”), sublinhando a relevância da perspectiva dos
explorados e dominados, ainda que ela não seja elaborada reflexivamente e que
eles não estejam revolucionando o sistema. No registro histórico-político, a
noção de habitus permite captar os códigos internalizados de
forma pré-reflexivaque conformam grande parte das práticas sociais, inclusive
as das classes subalternas. Tais práticas podem ser politicamente relevantes,
mesmo quando não põem em questão as modalidades vigentes de reprodução social.
O melhor exemplo disso encontra-se na análise que o próprio Marx faz da
participação dos camponeses no processo histórico que levou à ascensão de Luís
Napoleão ao poder de Estado na França em meados do século XIX. Naquele
episódio, sem associação nacional ou organização política própria que
permitisse a participação autônoma dos camponeses na vida política francesa, a
atuação política unitária dessa classe passa a depender dela encontrar para si
um representante “externo” [1]. Foi a tradição histórico-cultural internalizada
pelo campesinato francês — o seu habitus, diria Bourdieu — que lhe
permitiu encontrar na figura e nas ideias de Luís Napoleão a possibilidade de
realização — ilusória, é verdade — de suas aspirações. Foi isso que fez de Luís
Bonaparte o depositário da votação massiva do campesinato no plebiscito que
legitimou o golpe de dezembro de 1851. O caso reconstituído por Marx emO
dezoito brumário de Luís Bonaparte diz respeito a uma classe em declínio
que, majoritária e ilusoriamente, vê na consolidação do poder de Luís Napoleão
Bonaparte a possibilidade de restaurar suas condições anteriores de vida.
Não há dúvida que, para Marx, a busca da restauração da
ordem anterior, vigente na época do primeiro Napoleão, não era a única prática
camponesa possível. O seu relato enfatiza a possibilidade não realizada de uma
prática camponesa revolucionária e menciona, como indícios disso, uma série de
irrupções coletivas contra as mudanças adversas ocorridas nas condições
camponesas de vida.
O esquema teórico construído por Bourdieu também contempla a
existência de certa gama de disposições de conduta dentro de uma classe ou
fração de classe, o que veda interpretar de forma muito mecânica o habitus enquanto
dispositivo conservador. De fato, ele é um conjunto de disposições que permitem
múltiplas orientações de conduta dentro de uma classe ou fração de classe.
Quais os fundamentos estruturais disso? Para Bourdieu, são as diferentes
origens e trajetórias de indivíduos que ocupam posições similares no espaço
social (por exemplo, parte do operariado urbano provém da baixa classe média,
outra parte é constituída por ex-trabalhadores rurais etc.) o que favorece o
surgimento de diferenças de perspectiva e de opinião entre os agentes sociais.
Ainda assim, para ele, tudo “parece indicar que [isso ocorre] dentro dos
limites dos efeitos de classe; desta forma, as disposições ético-políticas dos
membros de uma mesma classe aparecem como formas transformadas da disposição
que caracteriza fundamentalmente a classe como um todo” (Bourdieu, 1984, p.
456) [2]. Esta percepção de que os limites de classe tendem a se impor à
diversidade das interpretações presentes em cada classe se traduz no visível
ceticismo de Bourdieu em relação à relevância política das “diferenças de
opinião” existentes entre as classes subalternas: para ele, sua capacidade de
contestação parece estar sempre na dependência de sua associação com a fração
intelectual (dominada) da classe dominante.
Esta digressão permite sublinhar, como já o fizemos em outra
parte, a importância de articular os conceitos de habitus e de
contradição. Na medida em que explorarmos esta articulação, as variações nas
disposições de conduta inerentes a cada classe não ficariam, como em Bourdieu,
dependentes apenas das posições e trajetórias das classes e dos atores; a
própria experiência social de cada classe — e especialmente a dos
dominados — poderia talvez explicar tais variações nas disposições de
conduta — em virtude do fato de essa experiência ser ambígua e dinâmica,
porque o sistema capitalista de classes é contraditório e cíclico.
Trata-se, é bom que se sublinhe, de uma sugestão cuja
pertinência deve ser examinada tanto teoricamente como em investigações
empíricas.
No que diz respeito às teorias da ação coletiva, a
investigação do problema da relação entre contradições sistêmicas e conflitos
de classes poderia absorver um grande conjunto de conceitos que elas têm
produzido e que são, creio eu, bastante ajustáveis a uma perspectiva marxista
renovada (TILLY, 1987; TARROW, 1998). Digo ajustáveis, porque as teorias dos
movimentos sociais — que hoje procuram fundir-se com os estudos sobre rebeliões
e revoluções em um teoria ampliada do “confronto político” (contentious
politics) — não trabalham usualmente com o conceito de classe (MCADAM, TARROW,
TILLY, 1996). No entanto, tais teorias sempre enfatizam a relevância das redes
de relações sociais para a mobilização coletiva. Ora, as classes sociais se
constroem não apenas por oposição às outras, mas também por adensamento das
relações entre seus próprios membros. São tais relações verticais e horizontais
que conformam os habitus de classe, assim como estes são os
fundamentos de seus modos próprios de vida. Desta forma, à primeira vista
parece ser possível trabalhar no sentido de “ajustar” conceitos e resultados
das investigações efetuadas pelos teóricos dos movimentos sociais. Conceitos
como “estrutura de mobilização”, “oportunidade política”, “repertório de ação
coletiva”, “quadro interpretativo” etc. seriam extraordinariamente úteis para
ajudar os investigadores de inspiração marxista a superar a fase defensiva, de
encolhimento, em que se encontram. Tenho a convicção de que, como tudo, uma
grande teoria só tem condição de se preservar renovando-se. Minha esperança é
que será este o caminho que seguirá o marxismo.
Notas
[1] O termo é de Marx. Luís Bonaparte tornou-se seu
representante “externo” na medida em que não era camponês nem foi instituído
como representante pela atividade política autônoma dos camponeses. No entanto,
ele só pôde tornar-se representante de classe pela atividade “interna” do habitus camponês,
conformado pela grande revolução francesa que os libertara da semisservidão e
os transformara em proprietários livres, condição garantida depois por Napoleão
I, no começo do século XIX.
[2] Quer dizer, para ele, a gama das disposições deriva da confluência entre a multiplicidade das trajetórias dos indivíduos (e suas famílias) e a trajetória/posição de classe. Isso significa que quanto menor a mobilidade social (ascendente ou descendente) menores são as chances de heterogeneidade dos habitus. E vice-versa. Quanto aos limites de classe não serem ultrapassados, trata-se de hipótese razoável enunciada em A distinção, que exige cuidadosa demonstração.
[2] Quer dizer, para ele, a gama das disposições deriva da confluência entre a multiplicidade das trajetórias dos indivíduos (e suas famílias) e a trajetória/posição de classe. Isso significa que quanto menor a mobilidade social (ascendente ou descendente) menores são as chances de heterogeneidade dos habitus. E vice-versa. Quanto aos limites de classe não serem ultrapassados, trata-se de hipótese razoável enunciada em A distinção, que exige cuidadosa demonstração.
Referências bibliográficas
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Charles. From Mobilization to Revolution. New York: MacGraw-Hill,
1987.
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G. A. “The Concept of ‘Egemonia’ in the Thought of Antonio Gramsci: Some Notes
and Interpretations”. Journal of History of Ideas, v. 21, n. 4,
1960.
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Brasílio Sallum Jr. é professor do Departamento de
Sociologia da FFLCH/USP. Este trabalho foi apresentado na Sessão Plenária
“Classes e movimentos sociais hoje”, do V Colóquio Internacional Marx
Engels, em 09/11/2007. Publicado em Luciana Aliaga, Henrique Amorim e
Paula Marcelino (Orgs.). Marxismo – teoria, história e política. São
Paulo: Alameda, 20011, p. 181-91.