
Tradução del
italiano: A. Veiga Fialho
1. A crítica
gramsciana do elitismo
A crítica gramsciana do elitismo apresenta hoje algumas
características de particular relevância. Em primeiro lugar, ela dirige a
atenção crítica para uma nova escola (Mosca, Michels, Pareto) que só muitos
anos depois encontrou no exterior reconhecimento teórico, retornando a nós na
vaga da redescoberta realizada pela politologia americana.
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Umberto Cerroni |
Mas, em segundo
lugar, a crítica gramsciana da escola elitista se desenvolve num plano de
grande originalidade porque, enquanto abandona a linha tradicional do marxismo terceiro-internacionalista
ocupada em argumentar sobre tempos e modos de uma improvável “extinção do
Estado”, não se reduz a uma visão tecnicista e cética [1]. Esforça-se, em vez
disso, na busca de uma abertura da elite dirigente, contestando o caráter permanente
da divisão entre governantes e governados, e atribui à elite renovada uma
cultura de promoção geral das massas.
A linha terceiro-internacionalista partia,
indiscutivelmente, de Estado e revolução, de Lenin, mas encontrou
rapidamente um bloqueio nas Questões do leninismo, de Stalin. O utopismo
da extinção do Estado é implicitamente posto a nu por Stalin com a afirmação de
que a obra de Lenin havia ficado incompleta e que cabia aos seus seguidores...
completá-la [2]. E o acabamento a que obviamente o próprio Stalin se
candidatava devia consistir na paradoxal operação de reforçar o Estado
socialista... a fim de extingui-lo. O Estado-máquina voltava ao centro.
O caráter paradoxal da argumentação de Stalin, na verdade,
iluminava o aspecto politicamente inviável da perspectiva de Lenin, mas,
sobretudo, indicava o beco sem saída em que terminava um discurso teórico sobre
o Estado inteiramente indeterminado, que assumia o Estado como um ente
geral-abstrato, como uma pura máquina de poder indiferente às suas relações com
um tipo histórico de sociedade e até às próprias diferenciações internas.
Naquele beco sem saída terminou, cedo ou tarde, toda a teoria do Estado
elaborada nos anos 1920-1930 pelos marxistas da III Internacional [3]. Nele
terminou o ativismo revolucionário de Lukács, que nunca conseguiu indicar uma
instituição plausível para sustentar sua ditadura do proletariado e que
permaneceu encerrado numa inconsistente teoria do partido-vanguarda. Mas nele
também terminou a escola jurídica soviética de Pachukanis e de Stutchka, que
não conseguiu jamais construir uma crítica do direito público capaz de se
ombrear à crítica do direito privado elaborada pelos dois juristas soviéticos.
O resultado, no quadro do marxismo da III Internacional, foi a vitória da concepção
de Vichinski, que só via o Estado como aparelho-máquina, instrumento coercitivo
de uma política arbitrária e repressiva. A teoria normativista de Vichinski
selava o voluntarismo político e convivia com a exaltação do Estado de polícia
e a negação do Estado de Direito. A normatividade do direito era reduzida ao
puro comando político e separada de toda e qualquer análise da relação entre
norma jurídica e atividade social, entre Estado representativo e sociedade
civil.
Também fora da III Internacional, no restante movimento
socialista, a teoria política decaiu, incorporando, por assim dizer, o fracasso
teórico do comunismo à moda soviética. Os momentos mais interessantes foram as
elaborações do austromarxismo, de Renner e Bauer, que, no entanto, no tocante à
concepção do Estado, não foram além de uma redescoberta da democracia
industrial e do relançamento da tradição do federalismo autonomista legado pela
efêmera experiência da Comuna de Paris.
Se se quiser completar o quadro, basta dizer que, fora do movimento
socialista, toda a teoria do Estado marcou passo na linha do normativismo de
Hans Kelsen ou mesmo involuiu, segundo a linha do velho liberalismo, até a
aceitação do fascismo com Schmitt, Romano, Rocco, Gentile. Não casualmente,
Weber morreu sonhando com Bismarck.
Entre as duas guerras, Gramsci parece, precisamente, o
único, dentro e fora da cultura política marxista, que trabalha com uma
concepção do Estado representativo que analisa em profundidade a relação
governantes/governados para nela especificar não só o rústico cimento de
força-coação, mas também a ligação elástica e móvel de hegemonia-consenso e
cultura. E assim Gramsci pôde se tornar, apesar das condições modestas em que
teve de trabalhar, o ponto de referência de uma retomada da reflexão europeia
sobre o Estado depois da II Guerra Mundial, quando o colapso dos fascismos
cancelou o pessimismo político de uma teoria encerrada no estreito círculo
delimitado pelo Estado do velho liberalismo e pelo Estado totalitário.
A obra de Gramsci podia oferecer pelo menos três pontos de
conexão para novos desenvolvimentos teóricos: uma crítica do elitismo bem
fundamentada, antes do seu relançamento por parte da politologia americana com
Lasswell e Schumpeter; a abertura para um novo Estado de massas que não
renegava a democracia política representativa; uma reflexão sobre o papel
central do consenso e da cultura da qual partir para reconsiderar a
problemática do Estado democrático moderno. Trata-se de três elementos que
certamente conviviam em Gramsci com outros de diferente inspiração, mas se
trata de elementos vitais que o leitor de Gramsci tem o dever de examinar com
atenção, considerando, exatamente, o panorama desconfortável oferecido pela
cultura teórico-política da sua época.
A “teoria marxista do
Estado”
Apesar dos fracassos que recordamos em torno do problema
central do Estado precisamente nos anos 1930, acentuou-se na III Internacional
a campanha para exaltar a “pureza” de uma teoria marxista do Estado. O caráter
inteiramente político e culturalmente improvisado de tal campanha é facilmente
revelado pela incrível negligência com que foram considerados os poucos textos
teóricos de Marx mais pertinentes (A questão hebraica, por exemplo), mas
sobretudo até os textos de Marx que foram publicados justamente no período
1927-1941 e, especialmente, o grande texto de teoria política que é a Crítica
da filosofia hegeliana do direito público. Justamente nestes textos,
particularmente na Crítica, vinham à luz preciosos elementos de uma teoria
da política firmemente inserida no tema da democracia política e, por isso, em
conflito com aquela teoria da ditadura do proletariado que fora tomada como a
única e principal proposta de Marx [4]. No entanto, deveria passar meio século
até que, no interior da prática política do socialismo, se descobrisse, por
fim, que precisamente o “jovem Marx” é que fornecia instrumentos
essenciais para a compreensão do Estado Democrático moderno.
Deve-se acrescentar, para concluir este ponto, que a
campanha de credenciamento de uma teoria marxista do Estado pronta e acabada (e
sem referência às obras de Marx mais pertinentes) foi prontamento acolhida, no
plano científico, não só pelos teóricos mais dogmáticos dos movimentos
marxistas, mas, mirabile dictu, pelos próprios adversários do marxismo
[5]. Uns e outros, em resumo, continuaram a trabalhar com uma “teoria marxista
do Estado” que, no melhor dos casos, remontava em realidade a Stalin e a Lenin,
e prescindia das importantes obras póstumas de Marx. Foi outro documento da
confusão que, entre política e ciência da política, se começava ou se
continuava a fazer um pouco por toda parte. Também neste aspecto, destaca-se
ainda mais a cautela intelectual de Gramsci e sua originalidade.
3. Schumpeter
Schumpeter, em 1942, registrou de certo modo este estado de
coisas, distinguindo umMarx profeta de um Marx sociólogo, e entreviu
a causa profunda de uma certa interpretação de Marx observando que “os
comentaristas ou os críticos, que partiam do lado da filosofia [...], não
conheciam bastante a fundo as ciências sociais”, e que “a forma mentis própria
dos construtores de sistemas especulativos tornava-os hostis a toda e qualquer
interpretação que não decorresse de algum princípio filosófico” [6].
Comentaristas e críticos, pois, viram “a filosofia na maior parte das
afirmações de fato” de Marx, especialmente quando Marx, ao contrário, tentava
substituir a teoria especulativa do Estado por uma análise sociológica
antiespeculativa.
Mas esta intuição de Schumpeter não foi muito adiante e não
chegou sequer a considerar seriamente as obras póstumas de Marx já publicadas
em 1942. Portanto, ele exerceu sua candente crítica sobre o cadáver da “teoria
marxista do Estado” que os anos 1930 lhe entregaram sob a inspiração de Stalin.
Ainda por cima, Schumpeter também atacava a “doutrina clássica da democracia”
com os três argumentos da inexistência de um bem comum, da impossibilidade de
discerni-lo por parte de todos e da consequente impossibilidade de uma vontade
geral do povo. De tais argumentos Schumpeter deduzia que a democracia era só “o
instrumento institucional para chegar a decisões políticas com base no qual
determinados indivíduos obtêm o poder de decidir através de uma competição que
tem por objeto o voto popular” [7]. Na teoria política, isso significava o colapso
da cultura da “velha Europa”, já preconizado por Schmitt.
Como o próprio Schumpeter afirmava, na teoria da democracia
eram invertidos os papéis: tornava-se “secundária a decisão por obra do
eleitorado em relação à eleição dos homens que deverão decidir” [8]. O que
Schumpeter não dizia era que, na realidade, ele escolhia assim uma das duas
linhas teóricas que precisamente a teoria clássica distinguira: antes a linha
da eleição como designação do que a da eleição como delegação,
antes a da pura designação dos governados do que a da indicação de um mandato
para governar. E sequer dizia que na teoria clássica, em realidade, as duas
linhas se entrelaçavam estreitamente porque os clássicos não se reduziram, como
pensava Schumpeter, ao utilitarismo simplista da identificação do bem comum. De
todo modo, Schumpeter chegava a uma decapitação da teoria da democracia que se
alinhava às outras duas já efetivadas pelo tecnicismo de Kelsen e pelo
decisionismo de Schmitt. De fato, ele, recusando o mecanicismo utilitarista a
que reduzira a doutrina clássica, excluía da teoria da democracia o grande
problema da transformação dos interesses individuais em projeto geral. Tal
problema continha um entrelaçamento indissolúvel de economia, política,
direito, e fixava o que chamaria de cultura da democracia. Era o problema
de Rousseau, que não conseguia superar o hiato entre vontade de todos e vontade
geral, mas também o problema de Kant, que só podia teorizar um Estado de razão
suprimindo os interesses individuais. Era o problema da escola liberal, que
construía o Estado de Direito restringindo o eleitorado aos proprietários. E
era o problema dos socialistas, que, diante deste panorama, chegavam a pensar
que numa sociedade baseada na propriedade privada e nos proprietários privados
jamais seria possível o sufrágio universal e, portanto, uma lei verdadeiramente
igual para todos. Não é um acaso que a primeira proposta operacional de um
sufrágio verdadeiramente universal apareça nos registros da Comuna de Paris.
Sem dizê-lo, Schumpeter redescobre a escola elitista
italiana e parte do ceticismo desta para delinear uma democracia reduzida a
técnica de designação do pessoal político profissional. Prepara, assim, os
instrumentos teóricos essenciais para a nascente politologia americana que,
depois do segundo conflito mundial, desembarcará na Europa para recordar aos
italianos Mosca, Michels e Pareto, já criticados por Antonio Gramsci.
4. Democracia e
emancipação
Dissemos que Gramsci não desenvolve, de modo algum, sua
crítica do elitismo no rastro da tradicional crítica “marxista” da
representação e do Estado. Interessa-lhe, antes, compreender e explicar como se
articula a hegemonia dos governantes e como se perpetua a subalternidade dos
governados, com específica referência a uma sociedade bastante diferente da
sociedade feudal com classes fechadas. Escreve Gramsci: “As classes dominantes
precedentes eram essencialmente conservadoras, no sentido de que não tendiam a
assimilar organicamente as outras classes, ou seja, a ampliar ‘técnica’ e ideologicamente
sua esfera de classe: a concepção de casta fechada. A classe burguesa põe-se a
si mesma como um organismo em contínuo movimento, capaz de absorver toda a
sociedade, assimilando-a a seu nível cultural e econômico: toda a função do
Estado é transformada: o Estado torna-se ‘educador’, etc.” [9].
Assim, na análise da sociedade moderna, a atenção se desloca
precisamente para amobilidade das classes que se segue à queda dos vetos
políticos e das discriminações jurídicas e, por conseguinte, para a nova função
assumida pelo Estado e, com ele, pela política e pelo direito. O ponto
culminante deste processo é indicado pela difusão do sufrágio universal: do
sufrágio verdadeiramente universal (não do sufrágio universal
masculino). De fato, é o sufrágio universal que sanciona o igualamento total
dos homens e das mulheres no nível mais elevado: o da decisão política. Mas,
para ver o alcance deste processo, deve-se ver a centralidade da decisão
política e também dos direitos políticos e civis na disputa política. Sem
ver esta centralidade, ficamos aturdidos, num extremo, pelo tecnicismo da
indicação dos governantes, e, num outro extremo, por aquilo que Gramsci chama,
falando precisamente da avaliação do sufrágio universal por parte de Jacques
Bainville, de “um sociologismo ingênuo e abstratamente tolo” [10].
Deve-se reconhecer que ver a centralidade do sufrágio
universal na teoria da democracia não podia ser fácil quando ele ainda só fora
instituído em poucos Estados e há pouco tempo. Mas, então, deve ser certamente
ainda mais valorizada a avaliação positiva que Gramsci faz do sufrágio
universal num cárcere da Itália fascista. Contra o argumento da quantificação
da democracia baseada no sufrágio universal, por exemplo, Gramsci objeta que
“não é verdade, de modo algum, que o número seja a ‘lei suprema’ nem que o peso
da opinião de cada eleitor seja ‘exatamente’ igual. Os números, mesmo neste
caso, são um simples valor instrumental, que dão uma medida e uma relação, e
nada mais” [11]. Mas Gramsci não conclui daí, de modo algum, como tantos
marxistas e revolucionários, que o voto seja só um meio para contar. Continua
ele: “E, de resto, o que é que se mede? Mede-se exatamente a eficácia e a
capacidade de expansão e de persuasão das opiniões de poucos, das minorias ativas,
das elites, das vanguardas, etc., etc., isto é, sua racionalidade ou
historicidade ou funcionalidade concreta. Isto quer dizer que não é verdade que
o peso das opiniões de cada um seja ‘exatamente’ igual. As ideias e as opiniões
não ‘nascem’ espontaneamente no cérebro de cada indivíduo: tiveram um centro de
formação, de irradiação, de difusão, de persuasão, houve um grupo de homens ou
até mesmo uma individualidade que as elaborou e apresentou na forma política de
atualidade. O número dos ‘votos’ é a manifestação terminal de um longo
processo, no qual a maior influência pertence exatamente aos que ‘dedicam ao
Estado e à Nação suas melhores forças’ (quando são tais)” [12].
Assim, Gramsci vê o sufrágio universal como um instituto
igualizador que destrói o privilégio racionalista do homem culto e proprietário
e, naturalmente, quase sempre branco e cristão, mas que nem por isso cancela o
elemento qualitativo, cultural, racional da política. Ao contrário,
precisamente a difusão da disputa política moderna para novos estratos, para
toda a massa, permite ver que a reconhecida centralidade do interesse
individual em que se baseia a atribuição do voto a todo cidadão não diminui,
mas aumenta, a incidência da cultura no embate político. Por isso, entre outras
coisas, torna-se tão intensa a atenção de Gramsci ao papel dos intelectuais, à
escola, à cultura de massas, à função educadora dos dirigentes, à promoção
cultural dos trabalhadores. Por isso, apesar da derrota da democracia italiana,
apesar da vitória do fascismo, Gramsci não segue a corrente que arrasta muitos
revolucionários a depreciar e, seja como for, a desvalorizar a democracia
política, o sistema parlamentar, o sufrágio universal. Ao fazer isso, e ainda
que sem plena consciência teórica, Gramsci toma um caminho diferente inclusive
em relação a Schumpeter e ao neoelitismo que amadurece no Ocidente. Neste
caminho, ele vê a democracia como algo bem diferente do que a eterna subjugação
dos governados avalizada pelos instrumentos de poder (Lenin) ou a pura e simples
designação dos governantes (Schumpeter): descobre, nada menos, que “a
democracia política tende a fazer coincidir governantes e governados (no
sentido de governo com o consentimento dos governados), assegurando a cada
governado o aprendizado gratuito das capacidades e da preparação técnica geral
necessárias a essa finalidade” [13]. Gramsci está aqui falando da escola na
democracia e destaca os valores de emancipação inseridos nos institutos
democráticos. Não parece excessivo dizer que, com os instrumentos oferecidos
pela sua época, está explorando caminhos nos quais hoje todos avançamos.
5. Mudanças
categoriais
Reintroduzindo a temática da cultura na política, Gramsci
empreende uma espécie de transformação geral dos problemas políticos herdados
da tradição marxista. Em primeiro lugar, elimina a contraposição entre
democracia política e socialismo baseada na rígida contraposição de duas
“ditaduras de classe”. Em segundo lugar, corrige a concepção elementar e
dogmática do Estado como pura máquina, introduzindo uma valorização do elemento
normativo-cultural. Em terceiro lugar, reflete de modo novo sobre a velha
problemática do “fim do Estado”, saindo do genérico utopismo para a concreta
avaliação histórica da relação governantes-governados. Se a democracia política
tende a fazer coincidir governantes e governados, não será este o terreno novo
no qual, de forma nova e refinada, se repropõe o antigo problema do
“deperecimento” e da “extinção” da coação estatal? Se o Estado não é pura
coação, não será possível, talvez, transformá-lo segundo um projeto consensual
de cultura? Por fim, Gramsci transforma os velhos ideais utópicos da tradição
socialista em modelos elásticos (históricos), substituindo as dogmáticas “leis”
canônicas do doutrinarismo socialista herdado em tendências assintóticas (diria
Kant) ou modelos orientadores a serem verificados historicamente. E assim abre
a perspectiva de uma profunda renovação do socialismo: de “doutrina” que deve
ser “aplicada”, volta a ser o que era na origem, um movimento de crítica
do presente, que constrói perspectivas teóricas baseadas na análise social e no
diálogo rigoroso com todos os argumentos científicos.
6. A “catarse
política”
Da redução da democracia a mera técnica de designação dos
governantes operada por Schumpeter derivou um tecnicismo mais perigoso do que
aquele jurídico-normativo de Kelsen. De fato, a democracia se tornava uma
competição mercantil entre os membros de uma elite profissional separada e
substancialmente autárquica pela qual o eleitorado só podia se interessar na
medida em que, tal como qualquer outra instituição democrática, as próprias
eleições se tornassem a arena de operações de troca medidas por interesses
particulares. Surpreendentemente, a crítica schumpeteriana do economicismo do
velho marxismo desemboca no relançamento de uma “política dos interesses” que
ainda hoje domina a politologia ocidental. Não somente se teoriza que o mercado
é o suporte fundamental da democracia, mas até que a própria democracia é só
mercado político.
Da matriz oitocentista derivaram, na teoria política,
justapondo-se e contrapondo-se, um romantismo político que culmina na política
“paixão” e um positivismo político que culmina na “razão de Estado”. Parece que
esta bifurcação ressurge constantemente em virtude do fato de que falta uma
tentativa consistente de mediar as duas opostas instâncias da política como
ideal e da política como força. Dá-se o caso de que Gramsci talvez seja o
primeiro a realizar tal tentativa, criticando seja a política-paixão de Croce,
seja a política-força dos elitistas.
Vindo da tradição marxista, Gramsci estava saturado de
cultura “economicista”. Ele buscava verificar sua consistência e superar seus
limites. É este o sentido profundo da sua crítica ao corporativismo, assim como
da importância atribuída à cultura e à direção intelectual na política. Neste
caminho Gramsci sugere a catarse da política socialista, isto é, sua
passagem do economicismo à plena compreensão das “superestruturas”. Neste
caminho evita toda tentação de redução tecnicista do problema político e
recupera com a cultura toda a “zona superior” da política, tanto o momento
normativo do direito quanto o ideal da ética. Em comparação com os desdobramentos
teóricos que a política apresenta na nossa época, Gramsci, portanto, oferece
uma grande ajuda para uma refundação laica e, no entanto, antipragmática da
política. Esta, ao contrário, parece escapar quer ao idealista Croce, para o
qual a política-paixão permanece “guiada pelo sentido do útil”, quer ao
empirista Schumpeter, que concebe a política como mercado. Croce busca a catarse fora
da política, no retorno agostiniano-especulativo ao homem interior; Schumpeter
sequer a busca.
Este caminho da catarse política ainda hoje permanece a via
mestra do Ocidente, isto é, de uma política que não queira renunciar à cultura
e, portanto, à produção de uma moderna civitas, de uma democracia moderna
ainda capaz de nos fascinar e, também, de nos ser útil. Uma tal democracia
consiste em regras do jogo, mas não se limita a um vazio jogo das regras, e
consiste em valores não metafísicos, identificados com as instituições. Uma tal
democracia, portanto, é feita de instituições políticas que também produzem e
reproduzem, além de regras metodológicas, valores intelectuais e morais.
Schumpeter disse que a democracia é feita de instituições,
não de valores. Gramsci nos ajuda a reagir a esta cética conclusão mascarada de
eficientismo tecnicista e a readquirir uma confiança teórica na democracia
moderna como regime político orientado não só por regras certas, mas também por
fins certos de promoção do homem; como regime político, portanto, no qual se
pode realizar uma reforma intelectual e moral: a revolução no Ocidente.
7. Conclusão
Avaliar a atualidade de um pensador político é um problema
bastante complexo que não pode consistir num mecânico registro “do que está
vivo e do que está morto” à luz dos novos dados da história. Este registro
talvez possa bastar para os níveis menos expostos às grandes mudanças
sociopolíticas — a lógica ou a estética — e, por isso, mais “duráveis”. Mas por
certo é inteiramente insuficiente e até enganoso para um pensador político, que
deve julgar instituições e relações, e não somente “pensar”. Aqui, a atualidade
só pode ser buscada com uma operação que relacione, em primeiro lugar, o
pensador à política do seu tempo e, depois, reflita tanto sobre sua capacidade
de entendê-lo, indo além do passado, quanto sobre a diversidade do nosso tempo
e a ordem diferente de categorias que ela determina. Só com uma complexa
operação dete tipo se consegue compreender — suponhamos — a grandeza da Doutrina
do direito de Kant, que, no distante ano de 1797, desenha o esqueleto
moderno do Estado de direito, observando-o de uma cidadezinha da velha Prússia.
Naturalmente, os mil detalhes “prussianos” do quadro são quase todos fora de
foco, imprestáveis, até ridículos. Mas o essencial lá está e é o que muda toda
a velha ordem das categorias (soberania, divisão dos poderes, primado da lei,
etc.). Quem, hoje, avaliar Kant segundo os detalhes “prussianos” e, portanto,
de acordo com a ausência de indicações utilizáveis a curto prazo, não erraria
só o juízo sobre Kant, mas também sobre o tempo dele e o nosso.
Gramsci se presta bem, pois, para demonstrar que a releitura
de um pensador político exige um esforço complexo de criatividade científica e,
em primeiro lugar, o abandono de todo estilo mimético de pensamento. Ninguém
pode sensatamente acreditar que bastará “aplicar” Gramsci para compreender
nosso tempo sem ter previamente comparado as variantes profundas que se
verificaram nas instituições e nas relações políticas. No entanto, pode ser
bastante útil ver como Gramsci escapa da tradição que tem recebe e sugere novos
esquemas de compreensão da realidade política. Embora admitindo, ele mesmo, ter
tomado emprestado de Lenin o conceito de hegemonia, Gramsci — sabemos —
insere-o no quadro de relações políticas bastante diversas e enriquece-o até
contrapor ahegemonia (consenso) à força na dinâmica da luta
política. E isso, ressalte-se, cerca de dez anos depois de Estado e
revolução e da Revolução de Outubro, sob o peso da derrota infligida pelo
fascismo ao seu partido. Naqueles doze anos, liberais como Croce e Gentile
hesitaram ou renderam-se ao “fascínio” da força vencedora, e liberais como
Churchill ainda viam “com compreensão” o fascismo italiano. Lukács navegava no
tempestuoso mar da sua mitologia ativista rumo ao stalinismo. Weber morrera
sonhando com Bismarck, e Schmitt ansiava por um Protetor, que destruiria a
Constituição democrática. Em vez disso, os melhores homens do liberalismo —
Gobetti e os irmãos Rosselli — batiam-se para que não se voltasse à “velha”
democracia liberal e, por isso, encontravam-se com Gramsci, que indicava novos caminhos
na relação entre elite e massa.
Por certo, seu partido-príncipe hoje nos parece — e é —
demasiadamente carregado de passado “leninista” para guiar o moderno pluralismo
dos partidos, mas, vindo daquele passado, Gramsci chegava a definir o partido como
“um filtro” e escapava do dogmático dilema de saber se o partido era parte ou
vanguarda da classe. Por alguns aspectos, Gramsci aludia a um “partido novo”,
que rompia a tradição não só de Lenin mas também de Michels e dos elitistas
italianos. Por certo, muitos detalhes estavam errados (eram ditados pela
Italiazinha provinciana), mas Gramsci não terá visto o essencial que estava por
vir? Ousaria dizer que houve uma singular comprovação: a do Comitê de
Libertação Nacional, o partido-príncipe da Libertação que arrastou um povo até
a refundação da democracia.
Não faltaram outras comprovações, se soubermos vê-las. Não
terá havido na Itália uma Assembleia Constituinte, como Gramsci de algum modo
vaticinava? E se não houve, por certo, o Estado operário e camponês preconizado
pelo Gramsci sovietista, não terá havido uma inédita República democrática
“baseada no trabalho” e assentada em grandes partidos populares e fortes
sindicatos operários?
O quesito mais importante que apresentaria para explicar a
atualidade de Gramsci é este: de onde Gramsci extraiu sua capacidade de sair da
tradição? Responderia que a extraiu do seu vigoroso esforço de comparação entre
o pensamento político que havia estudado (Lenin, Sorel, Croce, os elitistas) e
as diferenças do seu tempo. Conseguiu, assim, escapar seja do
doutrinarismo do repetidor (a que gostaria de reduzi-lo quem ainda busca “o
leninismo de Gramsci”), seja do ecletismo do empírico que persegue os fatos,
perdendo os critérios. Mas, para aquela comparação, teve de criticar, por um
lado, alguns dos seus doutrinarismos passados, e, por outro, sobretudo, refazer
profundamente a análise do objeto. E, como o objeto era a Itália, compreende-se
bem que, mesmo entre tantas “divagações” do filólogo e do erudito, houve um fio
condutor que o levou, através de notas e comentários, rumo à compreensão da
história italiana como o verdadeiro pressuposto da sua própria derrota. E, por
isso, rumo à reestruturação de uma teoria política que não pretendia “aplicar”
doutrinas, mas extrair do estudo da sociedade italiana indicações estratégicas.
Como sempre, ao avaliar a atualidade de Gramsci — e de
qualquer outro pensador político —, será conveniente vencer a preguiça
doutrinária sugerida pela ênfase dos seguidores e dos adversários políticos.
Será melhor tentar ler, através dos Cadernos do cárcere, os problemas e as
diferenças da nossa nova história de hoje. Para alterar tempestivamente a ordem
das categorias.
Notas
[1] Esclareço que a improbabilidade da “extinção do Estado”
não se refere à perspectiva teórica, mas sim àquela prática, no sentido de que,
ainda que se pudesse considerar fundamentada a perspectiva da “extinção do
Estado”, ela se mostra absolutamente inviável para uma política de breve termo.
De resto, toda a tradição teórica marxista, Lenin incluído, sublinhou
abundantemente quais deveriam ser os “pressupostos econômicos” da extinção do
Estado. Este juízo de inviabilidade fica reforçado, se for referido às
condições da Rússia de 1917. A propósito de toda esta problemática, remeto a Teoria
politica e socialismo, Roma, 1973.
[2] A obra de Lenin ficou efetivamente incompleta à véspera
da Revolução de Outubro, mas isso certamente não podia ser um argumento forte.
Foi assumido de modo oportunista por Stalin para avocar a si a elaboração da
teoria política. O trecho staliniano está em Questioni del leninismo,
Roma, 1952, p. 722.
[3] Sobre o pensamento político-jurídico soviético, remeto a Teorie
sovietiche del diritto, Milão, 1964, e também a Il pensiero giuridico
sovietico, Roma, 1969. Sobre outros desdobramentos, cf. Teoria politica e
socialismo, cit., além de Politica, Roma, 1987.
[4] Reuni os principais textos de Marx referentes a uma
possível conexão entre democracia e socialismo no pequeno volume K. Marx, Critica
al programma di Gotha e testi sulla transizione democratica al socialismo,
Roma, 1976. Trata-se de textos, deve-se notar, que atravessam toda a vida
intelectual de Marx. Eles estão em contraste, naturalmente, com outros textos
imediatamente ligados à prática política de uma época que ainda não conhecia o
sufrágio universal. Daí a indiscutível polivalência da obra de Marx, mas daí
também — se soubermos apreender — sua riqueza.
[5] Portanto, é efetivamente difícil encontrar pontos de
referência consistentes para uma reconstrução do pensamento político de Marx
subtraída à hipoteca da vulgata nascida da experiência soviética. Pode-se
apontar como parcial exceção alguns aspectos de trabalhos interpretativos de G.
della Volpe e de J. O’Malley. No mínimo, ambos têm pelo menos o mérito
raríssimo de ter chamado a atenção para a fundamental Crítica da filosofia
hegeliana do direito público, liquidada por seguidores e críticos de Marx como
texto “de juventude”. Sobre todo o problema, remeto à introdução para K. Marx, Critica
della filosofia hegeliana del diritto pubblico, Roma, 1983.
[6] J.A. Schumpeter, Capitalismo, Socialismo,
Democrazia, Milão, 1964, p. 10.
[7] J.A.
Schumpeter, op. cit., p. 257.
[8] J.A. Schumpeter, ib.
[9] A. Gramsci, Quaderni del carcere, Turim, 1975, p.
1647.
[10] A. Gramsci, ib.
[11] A. Gramsci, op. cit., p. 1624.
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http://www.acessa.com |
[12] A. Gramsci, ib.
[13] A. Gramsci, op. cit., p. 1547.
Umberto Cerroni (1926-2007),
teórico marxista do direito, escreveu, entre muitos títulos, Regole e valori
nella democrazia. Stato di diritto, Stato sociale, Stato di cultura (Roma:
Riuniti, 1989), em que foi publicado originalmente este ensaio.