- “Por que vocês o embalsamaram?”, perguntei ao operário comunista que me acompanhava. “Vocês fizeram dele uma múmia.” “Não acreditamos na imortalidade da alma”, respondeu.” Curzio Malaparte, Le bonhomme Lénine
O fato de não ter havido um “jovem Lenin” sugere forte continuidade em seus textos, tanto quanto em seus combates. Não há nele ruptura teórica comparável à que separa o jovem Marx do Marx da maturidade. Nem por isso devemos concluir que, em seus escritos e em sua ação, ele apenas aplicou a teoria de Marx e de Engels. Ao contrário, sustentamos que a fórmula marxismo-leninismo, independentemente da significação política que lhe foi atribuída para designar, a partir dos anos 1950, os partidos que romperam com a URSS para seguir a doutrina de Mao Zedong, parece-nos ter alcance teórico decisivo. Sem “Imperialismo, estágio superior do capitalismo”, a história mundial do século XX e do começo do XXI não seria compreensível. Ora, os conceitos fundamentais introduzidos por Lenin nessa obra fundamental, a começar pelo de imperialismo, não figuram nos textos dos fundadores. É indispensável, pois, analisar o significado da virada que ele imprimiu na teoria marxista.
Cabe notar inicialmente que, quarenta anos atrás, Michael
Löwy apresentou uma interpretação da trajetória teórica de Lenin bem diferente
daquela que sustentamos. Num artigo cujo argumento central vem anunciado no
título, “Da Grande Lógica de Hegel à estação finlandesa de Petrogrado” (Löwy,
1970), ele desenvolve uma ideia cara aos trotskystas, a saber, que ocorreu
efetivamente uma ruptura teórica no pensamento de Lenin, mas que tal ruptura se
expressou nas “Teses” de abril de 1917. Segundo ele, a leitura da Lógica de
Hegel, iniciada em setembro de 1914, teria levado Lenin a romper com sua visão
determinista, mecanicista, da evolução social. Antes de 1914, uma das
“primeiras fontes” de seu pensamento filosófico era “o capítulo da Sagrada
família intitulado ‘Batalha crítica contra o materialismo francês’, [...]
precisamente o único escrito de Marx em que ele ‘adere’ de uma maneira não
crítica ao materialismo francês do século XVIII”. Outro grave sintoma das
limitações teóricas de Lenin seria sua adesão ao marxismo de Kautsky, no qual
ele se apoia em sua polêmica contra Plekhanov.
Enfim, “uma análise minuciosa” de “Duas táticas da
social-democracia na revolução democrática” põe em evidência, em 1906, “a tensão
no pensamento de Lenin entre seu realismo revolucionário geral e os limites que
lhe impõe o apertado anel de ferro do marxismo que se pretende ‘ortodoxo’”
(Löwy, 1970, p.257; grifos no original).
Se Löwy tivesse voltado ainda mais atrás na cronologia das
obras de Lenin, teria encontrado a mesma tensão já em 1902. Sabemos, com
efeito, que, em Que fazer?, embora salientando o caráter burguês da revolução,
ele atribuiu à clase operária o papel de vanguarda na luta pela democracia.1 Doze
anos, pois, antes da leitura aprofundada da Lógica de Hegel, ele mostrou uma
dupla audácia dialética. Em primeiro lugar, porque nada é menos “determinista”
(no sentido pejorativo que tal termo costuma ser empregado) do que atribuir a
uma classe social um papel político decisivo numa revolução que não corresponde
a seus intereses históricos maiores. Em segundo, porque a resposta prática à
questão colocada no título Que fazer?, a criação de um órgão político central
para toda a Rússia, exprime uma compreensão dialética do combate
revolucionário, que articula a consciência socialista, a organização que a
concretiza e o programa que sintetiza seus objetivos. Fazer do “caráter
socialista” o gabarito único do programa revolucionário é empobrecer a análise.
O programa é uma categoria esencialmente política: articula os interesses
históricos fundamentais de uma classe social a seus objetivos concretos numa
situação específica. Esses objetivos se determinam no âmbito da densa rede das
relações sociais: a política supõe uma visão de conjunto da totalidade social.
Isso explica a recorrência da palavra todas em itálico nesta passagem bem
conhecida:
A consciência política de classe só pode ser trazida ao operário do
exterior, isto é, do exterior da luta econômica [...]. O único domínio de onde
se poderia extrair este conhecimento é o das relações de todas as classes e
categorias da população com o Estado e o governo, o domínio das relações de todas
as classes entre elas. [...] Para levar aos operários os conhecimentos
políticos, os social-democratas devem dirigir-se a todas as classes da
população, devem enviar em todas as direções destacamentos de seu exército.
(Lenin, 1965, p.431; grifos no original)
Löwy sem dúvida conhecia bem tais textos. Por que então, a
despeito deles, falar em “anel de ferro da ortodoxia”? Porque, embora
preconizando a ditadura revolucionária dos operários e dos camponeses, Lenin
pensava que tal revolução democrática teria caráter burguês (Löwy, 1970,
p.258). Os que não se empolgam com a fraseologia revolucionária perguntarão se
há, à luz do materialismo histórico, uma maneira de determinar o caráter de uma
revolução sem levar em conta o nível de desenvolvimento das forças produtivas
e, no caso da Rússia em particular, da lógica da economia camponesa.
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