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I. Introdução
Sem dúvida, examinar com profundidade o problema do Estado
no pensamento de Antonio Gramsci é algo que não se pode enfrentar no espaço de
um ensaio. De fato, para tratar a questão, dever-se-iam aprofundar todos os
aspectos de uma problemática que comportaria uma pesquisa sobre os próprios
fundamentos do pensamento filosófico-político gramsciano. Considero algo
estabelecido que se possa falar de Gramsci como um filósofo político e também,
seguramente, um filósofo, não tendo aqui a possibilidade de demonstrá-lo; para
isso, remeto ao meu livro, intitulado Giobbe e Prometeo, no qual descrevi
por que podemos, sem dúvida, pensar que Gramsci seja um pensador com perfil
filosófico e não simplesmente um teórico da política (MEDICI, 2000, p. 61-109).
Um pensador que se insere de modo original na tradição de pensamento da
filosofia política moderna e contemporânea, naquele "ius publicum
europaeum" do qual, na mesma época em que este pensava e trabalhava,
alguém tinha decretado a crise irreversível. Tratava-se, pelo contrário, de uma
tradição de pensamento que tinha ainda muito a dar, como a própria obra de
Gramsci e sua fortuna crítica sucessivamente e largamente demonstraram.
Aquilo que pretendo afirmar não é que Gramsci seja
simplesmente um epígono de Hobbes, Locke e Rousseau, muito embora tenha com
esses pensadores, e em particular com Rousseau, algum tipo de afinidade, como
julgou Carlos Nelson Coutinho e como também demonstrei (COUTINHO, 2006, p.
152-157; MEDICI, 2000, p. 70-77). Sua inserção no sulco daquela tradição vem,
de fato, em primeiro lugar, por meio da mediação fundamental de Hegel e
sobretudo de Marx. Por isso, seu pertencimento ao marxismo torna-se um elemento
indispensável de sua reflexão e influencia de modo substancial seu perfil
filosófico, aquele de uma filosofia "política" (que se ocupa, pois,
de alguns de seus temas clássicos, como o nexo entre Estado e sociedade civil),
mas também de uma filosofia compreendida de modo mais geral. Creio, portanto,
que não podemos mais duvidar de uma "filosofia" dos Quadernie
nos Quaderni, que, contudo, não sendo de tipo tradicional, é todavia
inegavelmente uma filosofia1.
Pelo contrário, penso que Gramsci, sob um olhar mais atento e visto em uma
perspectiva histórica adequada, pode, a esse propósito, revelar-se um dos mais
inovadores filósofos italianos da primeira metade do século XX.
Das vertentes teóricas, filosoficamente relevantes, que foram
até aqui individualizadas, certamente o tema do Estado, em primeira instância,
coloca-se sobre a vertente filosófico-política, e naturalmente é deste que,
acima de tudo, quero ocupar-me. Conservo (e procurarei demonstrá-lo) que, por
uma série de razões muito precisas, o tema nos conduz inevitavelmente a uma
dimensão mais ampla, filosófica no sentido mais geral, da pesquisa gramsciana
dos Quaderni.
II. Gramsci (Marx) e
o Estado
A doutrina oficial do marxismo sobre o tema do Estado, como
é sabido, foi formulada por Friedrich Engels, retomando a temática
saint-simoniana do desaparecimento do Estado como anulação da dimensão do
político como tal e do governo da sociedade como simples "administração
das coisas"2.
Se isso respondia plenamente à visão que Marx tinha do problema, permanece
ainda hoje um ponto problemático. Mas, certamente, Marx, ao final de 1845,
tinha ligado a existência do Estado ao domínio de classe, sem posteriormente
colocar em dúvida essa análise: o comunismo como superação da alienação
capitalista previa o desaparecimento de tal domínio conjuntamente com as
classes. Isso deveria ser acompanhado pela abolição da propriedade privada e da
divisão do trabalho, com o fim de obter a superação de todos os fenômenos
alienantes conectados à produção de mercadorias. Era prevista, também, a
abolição do Estado considerado orgânico ao domínio de classe, sobre a qual Marx
fala, sem lugar a dúvidas, no Manifesto de 1848. Em um texto mais
tardio, entretanto, Crítica ao Programa de Gotha, a fórmula que Marx adota
é a da "transformação" do Estado "de um órgão sobreposto à
sociedade em um órgão totalmente subordinado a ela"3.
Sem fazer uma inútil guerra de citações, tratar-se-ia, na realidade, de
compreender se, para Marx, o desaparecimento (ou abolição) do Estado coincidiria
ou não com o desaparecimento do "político" enquanto função separada e
específica; se sua concepção do comunismo prevê aqui uma sobrevivência qualquer
da dimensão política enquanto tal, uma vez superada, para usar as palavras de
Marx, "a limitada forma burguesa" – essa é uma bela expressão que se
encontra nos Grundrisse (MARX, 1970, v. II, p. 112-113)4–
ou auspicia sem condescendência o total desaparecimento.
De todo modo, o que aqui importa é que a tradição marxista
do século XIX se referirá principalmente a Engels, tanto ao Anti-Dühring,
no qual retomava recapitulando as análises de Marx sobre a gênese do Estado,
quanto àOrigem da família, da propriedade privada e do Estado5,
em que se fala da "extinção" do Estado como de um ponto firme sobre o
qual nenhum entre os teóricos marxistas mais importantes (com exceção dos
social-democratas alemães) colocará em discussão, nem mesmo Lenin. É essa
concepção "ortodoxa" que Gramsci encontra no arsenal teórico do
marxismo e é com ela que sua pesquisa deve acertar as contas. Na reconstrução
dessa problemática do Estado em Gramsci e do tema relacionado de sua crítica à
democracia, pretendo apoiar-me na leitura que fizeram, em um momento anterior
dos estudos gramscianos, dois estudiosos cujas obras permanecem pequenos
"clássicos". Falo de Massimo Salvadori, com Gramsci e il
problema storico della democrazia, de 1970, e de Christine Buci-Gluksmann, com
seu Gramsci et l'État, de 1975.
III. O tema do Estado na crítica gramsciana / Leninismo
ortodoxo ou crítica original da democracia burguesa?
No início de seu livro, Buci-Glucksamann observou justamente
que, colocando o centro da pesquisa gramsciana no tema do Estado, são retomadas
todas as grandes questões que estavam postas nas primeiras três décadas do
século XIX: crise do Estado liberal, natureza do Estado fascista, problemas do
Estado socialista soviético. Sua convicção é que a questão do Estado é
fundamental, principalmente nos Quaderni del carcere, na medida em que,
segundo ela, Gramsci passou de uma concepção da hegemonia em termos de classe,
típica de sua elaboração juvenil, para uma concepção de hegemonia "em
termos do Estado" (BUCI-GLUCKSMANN, 1976, p. 17). A seguir, como
Buci-Glucksmann admite, o ponto de vista gramsciano sobre o tema do Estado muda
com relação às análises formuladas na década de 1920, em um momento no qual a
revolução parecia iminente e Gramsci lutava para fundar também na Itália um
Estado de tipo soviético. Partilho dessa afirmação, assim como também estou de
acordo com Buci-Glucksmann quando sublinha que, articulando de uma maneira nova
o conceito de Estado com relação à sociedade, Gramsci soube evitar tanto as
velhas concepções socialdemocráticas quanto à teoria stalinista do Estado como
pura Força. Essa reflexão original de Gramsci desemboca naquela que ficou
conhecida como a "concepção ampliada" do Estado, com a inclusão,
dentro do próprio Estado, dos aparelhos hegemônicos.
Por outro lado, parece-me menos convincente a tese que, a
partir daí, Buci-Glucksmann pretende demonstrar, de que isso antecipa uma
"retomada leninista" da idéia da "extinção" do Estado na
sociedade comunista e que osQuaderni, em seu conjunto, devam ser lidos como uma
"continuação do leninismo" em condições históricas diversas e com
novas conclusões políticas (BUCI-GLUCKSMANN, 1976, p. 23). Do mesmo modo, estou
em desacordo também com outra tese, mais de uma vez repetida por ela: a de que
se poderia encontrar em Gramsci um ponto de vista filosófico
"materialista", o que não surpreende, na medida em que a autora
reivindica abertamente, ainda que em chave crítica, a leitura do marxismo
proposta por Louis Althusser. Sobre esse tema, tenho a opinião contrária e
destaco que, na reflexão filosófica dos Quaderni, são repelidas exatamente
as versões materialista e economicista da teoria marxista. Em particular sobre
a questão filosófica, o distanciamento entre Gramsci e Lenin é, a meu ver,
evidente, seja pelos acenos diretos – ele define a filosofia de Lenin como
"ocasional" (MEDICI, 2000, p. 9-37; GRAMSCI, 2001, p. 886) –, seja
indiretamente, com a demolição crítica que Gramsci faz, no Quaderno 11, da
impostação dada por Bukharin às questões filosóficas em seu Manual popular
de sociologia marxista, impostação coerente com a tradição do marxismo russo,
da qual Lenin, com seu Materialismo e empirocriticismo, de 1908, forneceu,
ao mesmo tempo, um complemento e uma síntese6.
Prescindindo dessa questão da presumida "ortodoxia
leninista" de Gramsci, não se pode esconder que a pesquisa de
Buci-Glucksmann sobre o tema do Estado teve uma importância fundamental para
uma melhor compreensão do pensamento gramsciano. A estudiosa francesa, pela
primeira vez, colheu a importância desse conceito de "Estado
ampliado", o fato de que existam em Gramsci dois momentos diversos nos
quais se articula o "campo estatal" – o Estado em sentido estrito,
que se identifica com o governo e seu aparelho coercitivo, e o Estado em
sentido ampliado, que é composto pelo conjunto de meios de direção intelectual
e moral, isto é, pelos aparelhos hegemônicos (BUCI-GLUCKSMANN, 1976, p.
89-140). Concordo com a análise de Buci-Glucksmann e com sua tese central sobre
a existência, em Gramsci, de uma nova concepção do Estado. Parece-me,
entretanto, que esse conceito de "Estado ampliado" permanece, ainda,
como algo a ser esclarecido – uma vez que seja verdade, como acredito, que isso
não conduza de fato Gramsci a simplesmente aderir à clássica teoria marxista da
"extinção" do Estado7–
sobretudo naquilo que diz respeito, nessa concepção "ampliada", ao
modo em que se deverá compreender a relação de distinção entre "sociedade
política" (o Estado em sentido estrito) e "sociedade civil",
distinção que, como Gramsci adverte, é "metodológica" e não
"orgânica" (GRAMSCI, 2001, p. 1590). Esse problema da relação entre
sociedade civil e Estado tem se revelado sempre uma vexata quaestio dos
estudos gramscianos contemporâneos8.
IV. Gramsci e o
problema da democracia
Em seu livro, Salvadori tenta reconstruir a reflexão em
torno do problema da democracia como apresentada em Gramsci. Em um capítulo
fundamental, intitulado Centralismo e democrazia nel "moderno
Principe", Salvadori destaca, com força, a importância da idéia de
"reforma intelectual e moral" para a concepção gramsciana. Essa
"reforma" comporta uma maturação das massas e é o elemento que
"propriamente impede a instrumentalização das massas por parte dos
dirigentes" (SALVADORI, 1970, p. 54). Salvadori coloca, de modo justo, no
centro dessa problemática, a convicção de que Gramsci acredita que seja
possível superar historicamente a divisão entre dirigentes e dirigidos,
governantes e governados. É evidente que apenas é possível superar essa divisão
criando as premissas de ordem intelectual para que as massas possam adquirir a
mentalidade de dirigentes. A superação da divisão entre governantes e
governados, que é um processo destinado a ocupar toda uma época histórica,
deverá, por isso, ser preparada por um tipo particular de direção política. O
partido revolucionário, segundo Gramsci, deve pretender a transformação de
todos os filiados em dirigentes, preparando assim as condições para que a
divisão entre governantes-governados seja superada (SALVADORI, 1970, p. 55-56).
Essa idéia do desaparecimento da divisão entre dirigentes e dirigidos deve ser
aproximada da proposta gramsciana presente noQuaderno 11, no qual, refletindo
sobre o relativo "infortúnio" do pensamento marxista (tornando-se
patrimônio das massas apenas em sua forma mais pobre e dogmática) e
perguntando-se "como se tornam populares as novas concepções de
mundo", Gramsci indica, na filosofia marxista, em sua versão
filosoficamente mais "elevada" de "filosofia da práxis", o
instrumento para promover um "progresso intelectual de massa"
(GRAMSCI, 2001, p. 1384-1385). São propostas de fundamental importância que, no
período transcorrido desde a redação dos Quaderni, não foram realizadas
senão minimamente, constituindo aquilo que, sem hesitar, chamarei de a parte
"utópica" (no sentido positivo do termo) da proposta política e
estratégica gramsciana9.
Continuando com seu exame, Salvadori justamente insiste
sobre a importância que Gramsci atribui ao funcionamento do partido em dois
modos diversos, segundo um centralismo que pode ser "democrático" ou
"burocrático". Com palavras muito duras, Gramsci critica o segundo
modo, o burocrático, com base no qual um partido se revela "puro executor,
não deliberante", "tecnicamente um órgão de polícia". Tais
afirmações são acompanhadas por uma crítica mais geral da burocracia, segundo
Gramsci, "a força consuetudinária e conservadora mais perigosa"
(GRAMSCI, 1953, p. 26, 51). Para completar seu raciocínio, Salvadori ressalta a
reivindicação (motivo constante do pensamento gramsciano) do valor político
revolucionário da verdade: "na política de massa – escreve Gramsci – dizer
a verdade é uma necessidade política". Sem verdade, sem "assumir
coletivamente as responsabilidades" que desta derivam, as classes
subalternas, ainda que sejam uma nova força dirigente, tornar-se-ão apenas
"um novo suporte para uma nova casta de governantes" (SALVADORI,
1970, p. 56-57; GRAMSCI, 1952, p. 168). Salvadori prossegue em sua investigação
ressaltando como na concepção gramsciana é abertamente afirmado o caráter
"totalitário" (no significado positivo que esse termo tem para Gramsci)
que deve ter a política levada avante pelo partido "moderno
Príncipe"; Salvadori se limita a observar que esse caráter totalitário é
uma necessidade e está relacionado com a teoria gramsciana da hegemonia.
Salvadori não comenta de nenhuma maneira essa afirmação e passa
a examinar a crítica gramsciana ao parlamentarismo, visto por Gramsci em termos
negativos tanto no partido como no Estado. Como conclusão de sua pesquisa, o
estudioso afirma peremptoriamente que a concepção de democracia de Gramsci é
plenamente "antiparlamentar e antiliberal" e se situa no interior de
uma problemática de tipo "sovietista" (SALVADORI, 1970, p. 58-60).
Sobre esse conjunto de questões, algumas considerações se fazem necessárias.
Para nós, já habituados a considerar o totalitarismo segundo a ótica de Hanna
Arendt, é difícil aceitar de modo simples o uso positivo que Gramsci faz do
adjetivo correspondente. Existe também o problema de estabelecer que coisa
exatamente Gramsci pensava, depois de 1930, da democracia
"sovietista" e, em particular, de seu grau efetivo de realização
prática na União Soviética daqueles anos. Sabemos muito da opinião de Gramsci
sobre a realização do socialismo na União Soviética no período no qual escreve
nos Quaderni; mas nada se sabe do que Gramsci pensava no último período de
sua vida, da metade de 1935 até abril de 1937, quando interrompida a redação
dos Quaderni, em função de suas condições de saúde, cada vez mais
precárias, permanecendo em um silêncio que duraria até sua morte.
Temos, entretanto, para o período de 1929 a 1935, a
possibilidade de encontrar quais eram alguns de seus pontos de vista sobre o
socialismo e a democracia na União Soviética por meio de uma leitura atenta e
também de uma certa decodificação daquilo que escreveu em certas notas dos Quaderni sobre
algumas questões. Em primeiro lugar, deve ser assinalada aquela sobre a
instrução e a organização escolar na qual Gramsci expressa opinião precisa,
criticando abertamente a "escola única" de impostação tecnológica
adotada recentemente na União Soviética e pronunciando-se por um tipo
alternativo de formação escolar (que denomina de "escola unitária"),
capaz de articular o saber técnico e a formação cultural de tipo humanista com
base no ideal pedagógico daquilo que chama de um "moderno Leonardo"
(MEDICI, 2000, p. 95; DORE SOARES, 2006, p. 99-122). Não se deve evitar a
importância dessa questão devido à estreita correlação existente em Gramsci
entre processos formativos e processos hegemônicos, entre pedagogia e política;
assim como não deve ser subvalorizada a função educativa que Gramsci reconhece
ao Estado enquanto tal, quando, por exemplo, escreve que "o direito é o
aspecto repressivo e negativo de toda a atividade positiva de deseducação
promovida pelo Estado" (GRAMSCI, 2001, p. 1571, sem grifos no original).
Geralmente, no que diz respeito ao giro nas direções
burocrática e totalitária do regime stalinista, tem-se, em Gramsci, se não
claras afirmações, indícios claríssimos: uma crítica, embora indireta (na
medida em que o nome de Stalin não comparece), no parágrafo 130 do Quaderno
8, intitulado Statolatria; ou ainda uma consideração mínima sobre uma
questão secundária na qual, em poucas linhas, livra-se daquele que já era o
chefe indiscutível do comunismo internacional (GRAMSCI, 2001, p. 1728-1730). Enfim,
o mais significativo de tudo: há, nosQuaderni, um significativo e pesadíssimo
silêncio sobre Stalin, o que, a meu ver, não deixa dúvidas sobre o quão
efetivamente distante Gramsci estava de aprovar a teoria e a prática do
stalinismo, colocando-se em forte oposição com este10.
V. Da Filosofia
política à Antropología / Povo, ação, "vida estatal" nos Quaderni del
Carcere
Irei agora examinar rapidamente a modalidade de reflexão que
Gramsci, já nos anos vividos em Turim, desenvolvia a respeito do tema da
nacionalidade, em relação aos vários povos do planeta, tanto os capitalistas
como os coloniais. Trata-se de uma reflexão complexa, já capaz, com os
instrumentos de pesquisa ainda imperfeitos que Gramsci possuía nessa fase, de
dar conta da diferença entre as ribombantes palavras da ideologia e os duros
fatos da realidade do domínio e da exploração colonial. Veja-se, por exemplo, o
que escreve em um artigo de 15 de abril de 1916 –La guerra e le colonie –,
no qual se encontra uma crua descrição das conseqüências da colonização
francesa na Argélia (a mais importante das colônias francesas de fato "tem
uma administração anárquica e arbitrária, um sistema de justiça penal
inqualificável, enormes arbítrios policialescos, torturas medievais");
isso porque a França predicou, acima de tudo, os princípios democráticos da
igualdade, da liberdade e da fraternidade, superiores às raças e às cores, mas
esses princípios não foram transportados dos confins da mãe pátria às colônias
(GRAMSCI, 1980, p. 257).
Trata-se de uma reflexão que vê o entrelaçamento do tema da
nacionalidade com aquele, para Gramsci tão importante quanto, de seu
"tornar-se Estado", e que deve prestar contas às realidades sociais,
políticas e culturais que cada povo representa e com suas aspirações à
independência nacional, a principal, complicada (e irresolvida), questão da
política européia do século XIX, nó górdio que apenas a espada da guerra
mundial saberá cortar. Existia, em Gramsci, e não deixará de existir com o
passar dos anos, uma atenção forte à particularidade, compreendida também como
riqueza e variedade das expressões culturais, sociais, lingüísticas11.
Uma sensibilidade testemunhada pela própria simpatia que nutria, em sua
juventude, pela questão da autonomia de sua Sardenha, apesar de o autonomismo
ter sido rapidamente superado com sua adesão ao socialismo. Não há no sardo,
filho da pequeníssima burguesia, aquela atitude presente no grande burguês
alemão deraciné, o qual, como intelectual cosmopolita – alimentado em
seus anos juvenis por aqueles ideais iluministas que eram muito vivos em sua
Renânia –, saudava como um fato absolutamente positivo do desenvolvimento
capitalista a perda, a superação daquilo que chamava o "idiotismo"
típico do homem do medievo, aquela limitação que resultava, no sistema social
feudal, nos vínculos exclusivos que duravam para cada um toda a vida, com um
mesmo lugar, com uma mesma realidade social e com um exclusivo ramo de
trabalho.
É evidente que, sobre isso, o ponto de vista de Gramsci será
completamente diverso e a prova pode ser, por exemplo, sua opinião sobre as
línguas populares e seus dialetos, que não são um valor absoluto, mas uma etapa
– que deve ser conservada e ao mesmo tempo superada – do desenvolvimento social
e individual. Veja-se, por exemplo, como, escrevendo a sua irmã Teresina,
falando do filho dela, exorta-a a não cometer o mesmo erro feito com a pequena
Edmea, filha do irmão Gennaro, sobre cuja educação Gramsci em sua letra
demonstra preocupação. Ele recomenda que não se cometa a tolice de impedir o
menino de falar livremente o sardo, que além de tudo não é sequer um dialeto,
mas uma língua em si: de outro modo, o menino "não terá contato com o
ambiente geral e terminará por aprender dois jargões, nenhuma língua"
(GRAMSCI, 1996, v. 1, p. 61)12.
Aqui, o ponto de vista de Gramsci se revela muito distante do de Marx, salvo
sobre um ponto: aquele no qual saúda positivamente a perda daquilo que, em sua
linguagem, Marx definia justamente como o "idiotismo do ofício". A
propósito daquele processo de esvaziamento progressivo do conteúdo do trabalho
humano que caracteriza o desenvolvimento capitalista e que se torna particularmente
evidente no taylorismo fordista, Gramsci parece seguir pontualmente as análises
marxianas e parece ter quase debaixo dos olhos os capítulos 12 e 13 de O
capital("Divisão do trabalho e manufatura" e "Maquinismo e
grande indústria") quando escreve certas notas do Quaderno 22.
De todo modo, é possível individualizar, a partir dos anos
de L'Ordine Nuovo, um itinerário de maturação e aprofundamento percorrido
pela reflexão de Gramsci sobre este tema das nações e dos povos em relação ao
Estado, itinerário que se torna evidente nos escritos do cárcere, quando a
"geopolítica" gramsciana se torna complexa e se afina com relação à
simplista oposição Oriente/Ocidente que teve lugar, pela primeira vez, nos
escritos juvenis com base na entusiástica adesão ao outubro soviético. Nos anos
vividos em Turim, a atenção ao horizonte internacional é quase completamente
absorvida por essa polaridade, enquanto, ao invés, o problema colonial
permanece no fundo. Com relação a isso, é também possível encontrar no jovem
Gramsci traços débeis da concepção que desse problema tinha o socialismo, o
qual, em alguns momentos, não deixou de justificar o empreendimento colonial
com a dúbia tese da "civilização" dos povos até então primitivos. No
já citado artigo de 1916, Gramsci acena em um certo ponto à "benéfica
função do capital", que seria, entretanto, "anulada pelo fato de que
os interesses industriais franceses recaem pesadamente sobre os indígenas".
Por outro lado, observava que, por toda parte, a civilização capitalista
"lançou suas sementes para a germinação das raças e dos povos
atrasados" e prevê que "a guerra européia rapidamente dará lugar à
guerra das colônias" (GRAMSCI, 1980, p. 257-258).
Trata-se, de todo modo, de uma linguagem muito difundida em
uma parte do socialismo marxista que atribui ao capital uma "função
civilizatória" e que era certamente favorável a posições livre-cambistas e
fortemente contrária ao protecionismo. Ecos desse ponto de vista são
perceptíveis nos escritos gramscianos redigidos durante seus primeiros anos em Turim.
Um ponto de vista e uma linguagem, entretanto, que Gramsci rejeita com força
poucos anos depois, como se torna evidente no artigo de 7 de junho de 1919, La
guerre delle colonie, em que a análise e o ponto de vista gramsciano são agora
claramente de estampa leninista e internacionalista: "Hoje a revolta arde
no mundo colonial: é a luta de classe dos homens de cor contra os brancos
exploradores e traidores" (GRAMSCI, 1987, p. 69). Assim, nos Quaderni,
resulta evidente que Gramsci tomou uma clara distância daquele modo de pensar,
no qual, por exemplo, com observações que ficaram famosas, rejeita e critica as
palavras que o filósofo socialista italiano Antonio Labriola pronunciou a
propósito de hipotético habitante da Papua. À pergunta feita há muitos anos por
um aluno –"Como faria para educar moralmente um papuano?" –, Antonio
Labriola teria respondido: "Provisoriamente o faria escravo". A
réplica de Gramsci é fortemente crítica. Sublinha que, naquela posição,
especifica-se "um pseudo-historicismo, um mecanismo extremamente empírico
e muito próximo do mais vulgar evolucionismo" e conclui que o modo de
pensar implícito na resposta de Labriola "não parece, portanto, dialético
e progressivo, mas acima de tudo mecânico e reacionário" (GRAMSCI, 2001,
p. 1366).
Essa severa réplica ao próprio Labriola, ao qual Gramsci, em
outra passagem dos Quaderni, tinha atribuído um importante reconhecimento
relativo a sua afirmação sobre a autonomia filosófica do marxismo – o qual não
teria necessidade de ser ecleticamente completado com outras filosofias,
possuindo já todos os conteúdos teóricos necessários (idem, p. 1507-1508) –,
assinala o caminho percorrido para diferenciar-se claramente daquelas posições
"filocoloniais" do velho socialismo. Depois de ter colocado em
discussão a "necessidade" da escravidão dos povos historicamente
imaturos, conclui observando que "um povo ou um grupo social atrasado
tenha necessidade de uma disciplina exterior coercitiva [...] não significa que
deva ser escravizado, a menos que se pense que toda coerção estatal é
escravidão" (idem, p. 1368, sem grifos no original). Gramsci unificará
depois sua concepção do domínio com a categoria compreensiva dos
"subalternos", um conceito extremamente inovador sobre o qual apenas
recentemente tem sido apreciada plenamente toda a sua importância teórica. O
que importa observar é que a questão dos povos e das nacionalidades se
encontra, já nos anos juvenis, diretamente entrelaçada com sua conclusão
política, com o "fazer-se Estado". A importância em Gramsci da
temática relativa ao Estado é particularmente evidente na dura polêmica com os
anarquistas, conduzida por ele e por outros nas colunas de L'Ordine Nuovo e,
de modo mais geral, na inovadora reflexão que leva a cabo sobre a temática dos
conselhos de fábrica como crítica da democracia parlamentar burguesa, que lhe
parece em estado falimentar e, conjuntamente, como tentativa de delinear uma
democracia operária de tipo sovietista.
Esse problema da nacionalidade se conecta, portanto, de modo
direto com o tema do Estado, com relação ao qual, como disse, não há acordo
entre os intérpretes de Gramsci. Como ilustrei acima, alinho-me com aqueles
estudiosos que acreditam não se encontrar nos Quaderni gramscianos a
clássica proposta marxiana relativa à "extinção" do Estado. O Estado,
para ele, permanece, porque, em primeiro lugar, Gramsci não adere à convicção
de que, na sociedade comunista, tornar-se-á supérflua a função do político
enquanto tal. Em segundo lugar, existe em Gramsci, freqüentemente de maneira
implícita, mas algumas vezes explícita, a idéia da "vida estatal"
como vida "ética", sem que seja fácil mais uma vez estabelecer a
ascendência precisa desse ponto, que certamente se apresenta como genericamente
"hegeliano". "Vida estatal" é uma expressão da qual Gramsci
faz um amplo uso nos Quaderni e indica um modo de ser autêntico de um
povo em sua expressão mais alta, precisamente a estatal. Como emerge claramente
do já citado parágrafo 130 do Quaderno 8, intitulado Statolatria, no
qual a expressão é usada por Gramsci repetidamente. Criticando como
necessariamente transitória uma fase de "estadolatria", na qual o
Estado no senso restrito (ou "sociedade política") domina sobre a
"sociedade civil" em uma alusão bastante transparente à Rússia
soviética, Gramsci indica a via a seguir e o objetivo a alcançar na criação de
uma "complexa e bem articulada" sociedade civil e conclui: "tornar
espontânea a vida estatal" (GRAMSCI, 2001, p. 1020-1021, sem grifos no
original).
Nos escritos do cárcere, a geopolítica de Gramsci se torna
mais complexa e afinada. Derek Boothman observou que, nos Quaderni, é
alargada a visão para um Norte/Sul que não é estritamente geográfico e uma
relação cidade/campo como relação internacional entre áreas mais ou menos
desenvolvidas. Por outro lado, destaca ainda Boothman que os apontamentos de
Gramsci sobre o mundo islâmico – situação fluida; tensões entre pan-arabismo e
tendências nacionalistas; laços entre intelectuais e povo fundados sobre o fanatismo
religioso –, em sua provisoriedade (esses temas não foram reelaborados por seu
autor), são muito atuais. Falando da situação na China, Gramsci depois
observava como o eixo da economia mundial estava se deslocando do Atlântico ao
Pacífico, com uma perda da importância da Europa na cena mundial. Interessantes
são, também, as observações sobre a Índia, da qual Gramsci destacava a
característica de um "entorpecimento social", enquanto o ghandismo
era visto por ele como movimento antiimperialista que deveria ser, entretanto,
compreendido no interior da categoria de "revolução passiva"13.
VI. Estado, Sociedade
Civil, História mundial
Por conseguinte, torna-se problemático afirmar que a
concepção presente nos Quaderni de uma "ampliação" do
Estado ("Estado ampliado" é a expressão tornada célebre por
Buci-Gluksmann), em seu desenvolvimento, conduza necessariamente a uma absorção
do Estado e de suas funções na sociedade civil. Por outro lado, como observa
Losurdo, deve-se ter presente que, para Gramsci, a sociedade civil é também
"Estado", portanto, resta saber "até que ponto a 'reabsorção da
sociedade política na sociedade civil' comporta o advento de uma sociedade
realmente sem Estado" (LOSURDO, 1997, p. 191-192). Penso que não deve ser
excluído um desenvolvimento no sentido oposto, no qual o conjunto da sociedade
civil seja "estatalizado", desenvolvendo funções de tipo estatal
"compreendido integralmente". Nessa direção, parecem ir algumas
observações gramscianas sobre a necessidade de uma "nova concepção do
direito", contidas no parágrafo 11 do Quaderno 1314.
Veja-se, além disso, o que escreveu a propósito do "indiferente
jurídico", no parágrafo 7 do mesmo caderno: "Questões do direito,
cujo conceito deverá ser estendido, compreendendo também aquelas atividades que
hoje caem sob a fórmula do 'indiferente jurídico' e que são do domínio da
sociedade civil, que opera sem 'sanções' [...] mas que nem por isso deixa de
exercer uma pressão coletiva e obter resultados objetivos de elaboração nos
costumes, nos modos de pensar [...], na moralidade etc." (GRAMSCI, 2001,
p. 1556). São afirmações que parecem não apenas privilegiar as razões da
sociedade com relação aos indivíduos, mas, também, submeter as instâncias da
sociedade civil com relação à esfera estatal; afirmações nas quais talvez não
seja impossível reconhecer os traços da idéia hegeliana da superioridade da
esfera estatal como lugar da verdadeira "eticidade".
Por outro lado, é convicção de Gramsci que os indivíduos
singulares podem, ou ainda devam, tomar em suas mãos os próprios destinos
individuais, reconciliando-se com a história geral e, assim, como escreve,
"participar ativamente da produção da história do mundo" (GRAMSCI,
2001, p. 1376). Aquilo que se afirma é a necessidade de uma convergência
construtiva entre "indivíduos" e "história universal". Para
que essa convergência se realizasse, seriam necessárias muitas mediações que
não serão aqui analisadas e que darei como pressupostas: do grupo social ao
partido político, do lugar de origem à nação da qual se faz parte com graus
diversos de consciência. Lendo aquela passagem do Quaderno 11 acima
citada, não se pode deixar de experimentar uma certa perplexidade perante
aquele sentido de uma distância não preenchida entre o indivíduo e a história,
na medida em que a afirmação de Gramsci pressupõe um conjunto de mediações
muito complexo, que resulta quase impossível de ser definido em termos
teóricos. E ainda é inegável que, não apenas na passagem citada, mas de modo
mais geral nos Quaderni, é possível reencontrar um ponto de vista que
retém possível uma convergência positiva entre os destinos dos indivíduos e a
história em seu conjunto: Gramsci está convencido de que os indivíduos podem e
devem tomar em suas mãos o próprio destino, reconectando-o com a história
mundial, que chamei propositalmente com uma terminologia de sabor hegeliano de
"história universal" (apesar de a idéia de uma história universal ser
muito antiga e poder ser remetida aos primeiros filósofos cristãos, tendo sido
depois renovada pelos filósofos do século XVIII).
Essa afirmação gramsciana referente à necessidade da
instauração de um nexo positivo entre indivíduos e história universal postula,
por outro lado, como coisa necessária na medida em que o discurso possua
sentido, a existência de uma conexão racional – e racionalmente descritível –
entre o agir humano e as circunstâncias históricas. Em outras palavras,
presume-se que os objetivos e a finalidade a que o agir humano se propõe (no
caso, a instauração de uma ordem social e política radicalmente renovada em
termos intelectuais e morais) possam ser efetivamente alcançados. Não se pensa
que possa haver uma distorção das finalidades a que o agir humano se propõe. O
problema é apenas aquele, muito complexo e de longo fôlego, de uma adequada
formação das consciências que torne possível o aparecimento de uma vontade
coletiva capaz de fundar a "nova ordem". Uma vez que tal vontade
coletiva esteja já formada, passando por uma correta impostação do problema das
relações de força, será possível ter a conseqüência positiva do surgimento de
uma nova ordem. Isso assinala certamente o máximo da distância entre o ponto de
vista de Gramsci e o de Sartre, um autor com o qual, a meu ver, o pensamento
gramsciano registra, por outro lado, significativas convergências na direção de
uma releitura da teoria marxista em chave antiobjetivista e antimaterialista (MEDICI,
2000, p. 92-102).
Sartre, em sua Critique de la Raison dialectique, de
1960, depois de um decênio de discussões críticas do marxismo
materialista-dialético, chegou a uma releitura e interpretação do materialismo
histórico de Marx que era, ao mesmo tempo, um desenvolvimento e uma
transformação. Como é notado, a teoria sartriana da história, exposta na
primeira parte da obra, deu lugar a discussões acesas e, segundo alguns,
colocava-se completamente fora do âmbito teórico marxista (era essa, por exemplo,
a opinião de Garaudy, que, nessa fase, era um áspero oponente de Sartre e
defensor da ortodoxia)15.
Em realidade, a questão era mais sutil. Não se pode negar, de fato, que, em
certos aspectos, Sartre fosse um leitor lúcido e atento de Marx, que colhia com
atenção certas características filosóficas da concepção histórica marxiana;
enfim, provavelmente se possa concordar com o que, em seu tempo, escreveu
Pietro Chiodi, para quem, inserindo no discurso marxiano sobre a história o
tema da "penúria", Sartre obteve "uma radicalização e uma
ampliação histórica das teses marxianas" (CHIODI, 1963, p. 107-108).
Sartre, examinando a história no âmbito do agir humano mais concreto, aquele
que por meio do trabalho faz a mediação com a materialidade, descobria que, do
encontro da práxis humana com a matéria, com a passagem através do campo do
prático-inerte que se gera nesse encontro, da práxis humana brota uma
"antipráxis" que produz a "contrafinalidade", enquanto toda
a dialética histórica, nesse nível da história material, revela-se dominada por
uma "antidialética" que distorce os fins humanos, tornando-os radicalmente
"outros". O exemplo é aquele dos camponeses chineses que, derrubando
os bosques para obter um espaço cultivável maior, provocam as desastrosas
aluviões que lhes flagelam ciclicamente.
Gramsci, ao invés, depois de ter rejeitado o determinismo e
o economicismo do velho marxismo da Segunda Internacional, parece ainda
alimentar, em certa medida, um otimismo racionalista do qual não é fácil
particularizar sua gênese, mas que indubitavelmente apresenta roupagens
hegelianas no momento no qual, voltando, parece afirmar uma racionalidade unilinear
do processo histórico. Apesar disso, o próprio Gramsci, nos anos de sua
formação, foi influenciado por Sorel, por ele admirado devido a sua capacidade
de ler Marx sem preconceitos, o qual, introduzindo na processualidade histórica
o fator imponderável do "hazard", tinha quebrado o nexo determinista
entre socialismo e história moderna, decretando a morte do "socialismo
científico"16.
Não há dúvida, como vimos, de que Gramsci postula como possível, e mesmo
necessária, uma reconciliação entre indivíduo e história universal, o que
Lukács, com uma expressão feliz, descreveu como "uma inseparável
concomitância operativa entre o homem singular e as circunstâncias sociais de
seu agir" (LUKÁCS, 1976, p. 327, grifos meus). Lendo integralmente a
página assinalada, percebe-se que o mestre húngaro colocou o problema de modo
impecável. Mas, do ponto de vista de Gramsci, isso não resolve a questão, e não
é, senão, um ponto de partida. Enquanto, na reflexão de Lukács, encontrará
espaço –"entre os conjuntos problemáticos" que constituem a
articulação do "ser social" – também o momento do
"estranhamento", a ausência em Gramsci desta fundamental problemática
marxiana poderia tornar possível a recaída em uma idéia da história universal
como grande afresco, movimento grandioso e complexo no qual tudo, cedo ou
tarde, termina por encontrar seu posto e uma razão sem desarmonias, contrastes,
contradições não resolvidas.
Em Marx, o capitalismo era visto como protagonista de uma
"universalização" empírica da história e da sociedade humana. Tinham
lugar, assim, pela primeira vez na história, indivíduos "empiricamente
universais" (MARX, 1967, p. 25). Mas a universalidade capitalista é
alienada na medida em que se realiza dentro do quadro das relações sociais
caracterizadas pelo domínio do capital e pela inversão fetichista entre coisas
e pessoas. Apenas o comunismo poderá constituir a superação da alienação capitalista
como realização de uma sociedade sem classes (mas também sem dinheiro, nem
capital, nem divisão do trabalho, abolidos enquanto fonte da divisão da
sociedade em classes). A idéia marxiana da sociedade comunista, embora seja
concepção pouco sistemática que apresenta elementos contraditórios em suas
variantes textuais – como fez notar Agnes Heller, que apontou a presença em
Marx de duas diversas teorias das contradições, das quais poderiam derivar duas
diferentes concepções do comunismo (HELLER, 1980, p. 81-94) –, é, seja como
for, uma concepção filosófica em sentido forte. Qualquer que seja a precisa
paternidade filosófica, trata-se de uma forma de utopia racional que não está
desprovida de antecedentes iluministas. Uma herança iluminista que está presente
ainda na própria idéia de "história universal" que, retomando de
Hegel, Marx retraduz na "universalidade empírica" e na
interdependência planetária que o capitalismo produz na história humana que o
comunismo deverá adquirir, libertando-a de seu invólucro alienado. O ponto de
vista de Gramsci sobre essa questão parece ser caracterizado por um ir e vir
entre Marx e Hegel e recentemente se tendeu a falar novamente de um forte
influxo sobre Gramsci da filosofia clássica alemã. Por exemplo, examinando a
concepção gramsciana do comunismo, Michele Martelli afirma que, em conclusão,
pode-se dizer que nela opera "a tripla lição de Kant, Hegel e Marx"
(MARTELLI, 2001, p. 232)17.
Existe um nexo evidente entre a própria idéia de uma
história como "história universal" e aquela simplesmente iluminista
de "cosmópolis", de uma cidade do mundo na qual o gênero humano se
reencontraria unificado para além das diferenças. Sobre a questão do
cosmopolitismo, todavia parece ampliar-se posteriormente a distância entre Marx
e Gramsci. De fato, o cosmopolitismo como característica (negativa) da análise
que Gramsci leva adiante nos Quaderni sobre a história dos
intelectuais italianos, historicamente incapazes de unir-se ao povo,
dificilmente deixa sobreviver uma idéia positiva de um "outro"
cosmopolitismo, aquele universalismo cosmopolita apresentado na idéia marxiana
do comunismo. Como já observou J. P. Diggins, a visão crítica que Gramsci tem
do cosmopolitismo – relacionada com sua particular leitura do humanismo como
movimento cultural aristocrático que continua e acentua a separação entre os
intelectuais e o povo –é muito original, porque antes dele prevalecia a idéia
de que uma visão cosmopolita "tivesse efeitos libertadores", devido a
muitos dos princípios do Iluminismo estarem baseados na expectativa de uma
"civilização universal em evolução" e, em grande parte do pensamento
ocidental, o cosmopolitismo era visto como um estágio mais avançado,
"superior ao liberalismo e ao nacionalismo"18.
VII. Para uma nova
consciência
Deixando de lado essas divergências entre Gramsci e Marx, a
efetiva realização desse nexo entre indivíduo e história universal, do modo
como o primeiro a postula, apresenta-se como altamente problemática, embora
permaneça estritamente no interior de seu horizonte teórico. De fato, parece-me
que, na realidade histórica de nosso tempo, deva-se encontrar, ao invés, a
preponderância daqueles processos que Gramsci chama de "moleculares",
ou seja, os processos caracterizados preponderantemente pela ausência de consciência.
Enquanto um dos objetivos que perseguia "seu" marxismo, compreendido
como "filosofia da práxis", era exatamente tornar-se consciente dos
processos históricos nos quais estamos imersos. Ainda a respeito da força
política – o sujeito histórico "moderno Príncipe" no qual deveria
encarnar-se a vontade coletiva do povo-nação –, nosso esforço, segundo Gramsci,
deve ser o de "dedicar-se sistematicamente e pacientemente" a tornar
"sempre mais homogênea, compacta, consciente de si própria" tal força
(GRAMSCI, 2001, p. 1558). Essa consciência parece-me uma das idéias-força
gramscianas e um aspecto de sua pesquisa pleno de potencialidades. De fato,
pergunto-me até quando o "vazio" de consciência caracteriza o mundo
contemporâneo. A partir da ausência de controle por parte dos homens sobre seus
próprios processos produtivos, devido àquele fenômeno real e concreto ao qual
Marx se referia com o termo filosófico de "estranhamento", o fato de
um "poder estranho" dominar os homens, ao invés de ser por eles
dominado (e que se apresenta em última instância como "mercado
mundial"), é tal também porque falta a capacidade de tornar-se consciente
do processo que o produziu, um processo de separação e hipostação de forças
humanas. Forças que os homens que as produziram tiveram "estranhadas"
de si, deixando de estar em condições de compreender a gênese e muito menos de
reapropriá-las.
Um vazio de consciência que caracteriza de modo forte e
trágico também os processos histórico-políticos atuais, marcados pela
estratégia da administração Bush da "guerra preventiva" , na qual se
torna claro que o marineamericano, instrumento ativo de uma máquina bélica
de potência militar esmagadora, age também como um indivíduo em total vazio de
consciência, sem conhecer minimamente a história do país para o qual foi
enviado a combater com base em uma propaganda ideológica grosseria e falsa
("levar a democracia"), nem estar sequer em condições elementares
para apontar países como Iraque ou o Irã em um mapa. A guerra, sempre constante
negação da história humana (porque, parafraseando o Manifesto de Marx
e de Engels, pode-se dizer que "toda a história percorrida é história das
guerras"), teve em seu tempo sua "lucidez". Os espartanos
combatiam os atenienses, os atenienses combatiam os persas, inimigos bem
visíveis e particularizáveis enquanto tal. O indivíduo e a coletividade
combatiam um inimigo que era tal por razões precisas, evidentes tanto ao chefe
supremo como ao último dos hoplitas. Foi a partir de certo ponto que a guerra
se tornou mais complexa e mais difícil de explicar a si e aos outros, como se
vê, por exemplo, no célebre diálogo entre os atenienses e os habitantes da ilha
de Melo, que Tucídides transmitiu em sua História da Guerra do Peloponeso.
Estamos ainda em um mundo, o antigo, que não conhece nenhuma regulamentação
pacífica das relações entre os Estados. A paz é apenas, segundo a notada
expressão, "uma trégua entre uma guerra e outra". Mas prontamente as
razões, por assim dizer, "naturais" da guerra começam a tornar-se
menos claras, a turvar-se por causa da vontade imperial de Atenas, apenas
mascarada sob um verniz de racionalidade. Desde então, muita água passou sobre
as pontes e, num processo plurissecular, os homens iniciaram a compreensão de
que as relações entre os Estados podem e devem ser subtraídas ao Estado de
natureza de uma guerra de todos contra todos.
Não podemos ocultar que é um processo gravemente involutivo
este que coloca a guerra no centro da estratégia das relações internacionais
com a máscara ideológica de uma dupla missão civilizadora (levar a democracia
aos países que não a têm). A exigência que encontramos em Gramsci, de uma
reconciliação indispensável entre indivíduo e história universal, revela-se
justamente atual porque torna evidentes aquelas contradições entre exigência de
consciência e falta dessa, que, como vimos, caracteriza ainda boa parte dos
processos históricos e políticos contemporâneos.
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Il Saggiatore.
1 Como
já reconhecem alguns dos estudos mais recentes: conferir, entre outros, Baratta
(2003, p. 77-117).
2 Na terceira parte de seu Antidühring, Engels escrevia: "O proletariado apodera-se do poder do Estado e antes de tudo transforma os meios de produção em propriedade do Estado". Dessa forma, suprime toda diferença de classe e, para isso, suprime também o Estado. De fato, não apenas não existiriam mais classes sociais mantidas na opressão, como também não seria mais necessária a força repressiva do Estado. A intervenção do Estado nas relações sociais torna-se supérflua em todos os campos: "no lugar do governo sobre as pessoas surge a administração das coisas e a direção dos processos produtivos. O Estado não é 'abolido': se extingue" (ENGELS, 1950, p. 305, sem grifos no original).
3 Sobre a complexidade do problema e também de algumas discrepâncias entre as concepções de Marx e Engels a respeito, ver Danilo Dolo em sua "Introdução" a I marxisti e lo Stato, o qual observa que precisaria ser mais bem verificado "se é realmente verdade" que as obras de Marx "documentam uma completa adesão [...] à teoria da extinção do Estado não apenas em sua fase juvenil, como também na maturidade" (ZOLO, 1977, p. IX-LIV, XXIV).
4 Comparando o mundo antigo, no qual o homem "é sempre o fim da produção", ao mundo moderno, no qual "a produção se apresenta como fim do homem e a riqueza como a finalidade da produção", Marx observa: "in fact, uma vez cancelada a limitada forma burguesa, o que é a riqueza senão a universalidade das necessidades, das capacidades, dos gozos [...] criada no intercâmbio universal? O que é senão o pleno desenvolvimento do domínio do homem sobre as forças da natureza [...]? O que é senão a exteriorização absoluta de seus dotes criativos [...] na qual o homem não se reproduz em uma dimensão determinada, mas produz a própria totalidade?" Por isso, também, se o "infantil mundo antigo" se apresenta como uma coisa mais elevada, isso "é satisfatório de um ponto de vista limitado" (MARX, 1970, v. II, p. 112-113).
5 "O Estado não existe desde a eternidade. Existiram sociedades que o ignoraram e que não tiveram nenhuma idéia do Estado ou do poder estatal. Em um determinado grau do desenvolvimento econômico [...] ligado à divisão da sociedade em classes, [...] o Estado tornou-se uma necessidade". Avizinha-se, entretanto, a passos rápidos, um estágio da produção no qual as classes, tornadas obstáculo à produção, cairão; com elas cairá também o Estado. A sociedade reorganizada como uma associação livre dos produtores relegará o conjunto da máquina estatal ao posto que merece, "isto é, ao museu das antiguidades, ao lado da roca de fiar e do machado de bronze" (ENGELS, 1963, p. 203-204).
6 Aqui, considero que, confutando e rejeitando o ponto de vista teórico de Bukharin, Gramsci implicitamente rejeitasse também a impostação dada aos problemas filosóficos pelo próprio Lenin.
7 Sobre isso, concordo com as opiniões expressas por Domenico Losurdo, que observa que Gramsci é o autor marxista que se demonstra mais crítico às tendências anárquicas e a coisa "se compreende bem": de fato, "fazer coincidir o fim o domínio burguês com o fim do Estado" comporta uma forma de mecanicismo "que faz das instituições políticas uma simples superestrutura da economia"; não é, pois, de surpreender-se que, entre oscilações e contradições, Gramsci "se tenha esforçado por redimensionar, reinterpretar ou colocar em discussão a tese da extinção do Estado" (LOSURDO, 1997, p. 181, 198, 190).
8 Sobre esse problema, remeto à boa reconstrução textual feita por Guido Liguori, da qual, entretanto, não partilho as conclusões, que reportam, mais uma vez, toda a problemática gramsciana do Estado à clássica concepção marxista, de derivação engelsiana, sobre a "extinção" (LIGUORI, 2004, p. 208-226). Uma reproposição dos termos dessa questão encontra-se ainda em Dore Soares (2000, p. 55-112).
9 Para o caráter particular da "utopia" gramsciana, remeto a meu ensaio "L''utopia' gramsciana ta antropologia e politica" (MEDICI, 2006, p. 193-205).
10 A importância dessa noção de "estatolatria" foi assinalada também por Coutinho, que a reivindica analiticamente em sua reconstrução da concepção gramsciana do "Estado ampliado", destacando também a distância das posições gramscianas do modo de pensar de Stalin sobre essa questão (COUTINHO, 2006, p. 106-112).
11 Sobre a complexidade da concepção que Gramsci faz da questão da linguagem como veículo de comunicação e sobre a dificuldade proposta pela necessidade de uma comunicação ao nível do movimento comunista internacional, fato de realidade e línguas nacionais, considerações sugestivas são formuladas por Francisco Fernández Buey, que observa, por outro lado, como está presente em Gramsci um tipo de "obsessão" pela linguagem da comunicação interpessoal (BUEY, 2001, p. 194-203).
12 Gramsci prossegue escrevendo "Recomendo-te, de todo coração, não cometer tal erro e deixar que teus filhos absorvam todo o sardismo que quiserem e se desenvolvam espontaneamente no ambiente natural no qual nasceram" (carta a Teresina Gramsci, de 26 de março de 1927).
13 Utilizei, para esta reconstrução, as observações de Boothman (2006).
14 A propósito de uma concepção de direito que seja "essencialmente renovadora", Gramsci escreve: "essa não pode ser encontrada, integralmente, em nenhuma doutrina precedente [...] Se todo Estado tende a criar e a manter um certo tipo de civilização e de cidadão [...] tende a fazer desaparecer certos costumes e atitudes e a difundir outros, o direito será o instrumento para esse fim [...] e deve ser elaborado para que seja [...] muito eficaz e produtor de resultados positivos" (GRAMSCI, 2001, p. 1570-1571).
15 Em Questions a J.-P. Sartre, de 1960, Garaudy definiu a Critique como "ensaio sobre os fundamentos do anti-marxismo".
16 Ver, em particular, o ensaio de 1898, "La necessità e il fatalismo nel marxismo" (SOREL, 1973, p. 96-124).
17 A pesquisa que Michele Martelli conduz em seu livro aponta para a importância de Hegel (embora no âmbito da fundamental mediação marxiana) para a reflexão de Gramsci, esclarecendo como seu ponto de vista foi conduzido a revalorizar as posições do filósofo de Stuttgart, embora fosse crítico das formas que o hegelianismo assumiu nas leituras de Croce e Gentile (MARTELLI, 2001, p. 107-188).
18 Prossegue
Diggins: "Até mesmo Marx, um herdeiro do Iluminismo, pensava em termos de
leis universais válidas para todas as sociedades em estágios símiles de
desenvolvimento histórico. Sua famosa argumentação segundo a qual os
trabalhadores não tinham pátria expressava a esperança de que o proletariado
fosse capaz de um cosmopolitismo que seria derivado [...] da experiência
concreta" (DIGGINS, 1990, p. 174-177).
2 Na terceira parte de seu Antidühring, Engels escrevia: "O proletariado apodera-se do poder do Estado e antes de tudo transforma os meios de produção em propriedade do Estado". Dessa forma, suprime toda diferença de classe e, para isso, suprime também o Estado. De fato, não apenas não existiriam mais classes sociais mantidas na opressão, como também não seria mais necessária a força repressiva do Estado. A intervenção do Estado nas relações sociais torna-se supérflua em todos os campos: "no lugar do governo sobre as pessoas surge a administração das coisas e a direção dos processos produtivos. O Estado não é 'abolido': se extingue" (ENGELS, 1950, p. 305, sem grifos no original).
3 Sobre a complexidade do problema e também de algumas discrepâncias entre as concepções de Marx e Engels a respeito, ver Danilo Dolo em sua "Introdução" a I marxisti e lo Stato, o qual observa que precisaria ser mais bem verificado "se é realmente verdade" que as obras de Marx "documentam uma completa adesão [...] à teoria da extinção do Estado não apenas em sua fase juvenil, como também na maturidade" (ZOLO, 1977, p. IX-LIV, XXIV).
4 Comparando o mundo antigo, no qual o homem "é sempre o fim da produção", ao mundo moderno, no qual "a produção se apresenta como fim do homem e a riqueza como a finalidade da produção", Marx observa: "in fact, uma vez cancelada a limitada forma burguesa, o que é a riqueza senão a universalidade das necessidades, das capacidades, dos gozos [...] criada no intercâmbio universal? O que é senão o pleno desenvolvimento do domínio do homem sobre as forças da natureza [...]? O que é senão a exteriorização absoluta de seus dotes criativos [...] na qual o homem não se reproduz em uma dimensão determinada, mas produz a própria totalidade?" Por isso, também, se o "infantil mundo antigo" se apresenta como uma coisa mais elevada, isso "é satisfatório de um ponto de vista limitado" (MARX, 1970, v. II, p. 112-113).
5 "O Estado não existe desde a eternidade. Existiram sociedades que o ignoraram e que não tiveram nenhuma idéia do Estado ou do poder estatal. Em um determinado grau do desenvolvimento econômico [...] ligado à divisão da sociedade em classes, [...] o Estado tornou-se uma necessidade". Avizinha-se, entretanto, a passos rápidos, um estágio da produção no qual as classes, tornadas obstáculo à produção, cairão; com elas cairá também o Estado. A sociedade reorganizada como uma associação livre dos produtores relegará o conjunto da máquina estatal ao posto que merece, "isto é, ao museu das antiguidades, ao lado da roca de fiar e do machado de bronze" (ENGELS, 1963, p. 203-204).
6 Aqui, considero que, confutando e rejeitando o ponto de vista teórico de Bukharin, Gramsci implicitamente rejeitasse também a impostação dada aos problemas filosóficos pelo próprio Lenin.
7 Sobre isso, concordo com as opiniões expressas por Domenico Losurdo, que observa que Gramsci é o autor marxista que se demonstra mais crítico às tendências anárquicas e a coisa "se compreende bem": de fato, "fazer coincidir o fim o domínio burguês com o fim do Estado" comporta uma forma de mecanicismo "que faz das instituições políticas uma simples superestrutura da economia"; não é, pois, de surpreender-se que, entre oscilações e contradições, Gramsci "se tenha esforçado por redimensionar, reinterpretar ou colocar em discussão a tese da extinção do Estado" (LOSURDO, 1997, p. 181, 198, 190).
8 Sobre esse problema, remeto à boa reconstrução textual feita por Guido Liguori, da qual, entretanto, não partilho as conclusões, que reportam, mais uma vez, toda a problemática gramsciana do Estado à clássica concepção marxista, de derivação engelsiana, sobre a "extinção" (LIGUORI, 2004, p. 208-226). Uma reproposição dos termos dessa questão encontra-se ainda em Dore Soares (2000, p. 55-112).
9 Para o caráter particular da "utopia" gramsciana, remeto a meu ensaio "L''utopia' gramsciana ta antropologia e politica" (MEDICI, 2006, p. 193-205).
10 A importância dessa noção de "estatolatria" foi assinalada também por Coutinho, que a reivindica analiticamente em sua reconstrução da concepção gramsciana do "Estado ampliado", destacando também a distância das posições gramscianas do modo de pensar de Stalin sobre essa questão (COUTINHO, 2006, p. 106-112).
11 Sobre a complexidade da concepção que Gramsci faz da questão da linguagem como veículo de comunicação e sobre a dificuldade proposta pela necessidade de uma comunicação ao nível do movimento comunista internacional, fato de realidade e línguas nacionais, considerações sugestivas são formuladas por Francisco Fernández Buey, que observa, por outro lado, como está presente em Gramsci um tipo de "obsessão" pela linguagem da comunicação interpessoal (BUEY, 2001, p. 194-203).
12 Gramsci prossegue escrevendo "Recomendo-te, de todo coração, não cometer tal erro e deixar que teus filhos absorvam todo o sardismo que quiserem e se desenvolvam espontaneamente no ambiente natural no qual nasceram" (carta a Teresina Gramsci, de 26 de março de 1927).
13 Utilizei, para esta reconstrução, as observações de Boothman (2006).
14 A propósito de uma concepção de direito que seja "essencialmente renovadora", Gramsci escreve: "essa não pode ser encontrada, integralmente, em nenhuma doutrina precedente [...] Se todo Estado tende a criar e a manter um certo tipo de civilização e de cidadão [...] tende a fazer desaparecer certos costumes e atitudes e a difundir outros, o direito será o instrumento para esse fim [...] e deve ser elaborado para que seja [...] muito eficaz e produtor de resultados positivos" (GRAMSCI, 2001, p. 1570-1571).
15 Em Questions a J.-P. Sartre, de 1960, Garaudy definiu a Critique como "ensaio sobre os fundamentos do anti-marxismo".
16 Ver, em particular, o ensaio de 1898, "La necessità e il fatalismo nel marxismo" (SOREL, 1973, p. 96-124).
17 A pesquisa que Michele Martelli conduz em seu livro aponta para a importância de Hegel (embora no âmbito da fundamental mediação marxiana) para a reflexão de Gramsci, esclarecendo como seu ponto de vista foi conduzido a revalorizar as posições do filósofo de Stuttgart, embora fosse crítico das formas que o hegelianismo assumiu nas leituras de Croce e Gentile (MARTELLI, 2001, p. 107-188).
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