
Carlos Eduardo Rebuá
Oliveira
Resumo
Apesar da recente profusão de trabalhos acerca das hq’s e
sua relação com a educação, estudar os quadrinhos na sala de aula ainda
representa tarefa difícil não apenas pela bibliografia acadêmica ainda
incipiente, mas sobretudo pela dificuldade em se discutir tal linguagem sem
incorrer no mecanicismo, no utilitarismo, ou em outras palavras, estudar as
hq’s sem enjaulá-las na categoria de "ferramenta", de "carta na
manga" do professor.
Tendo como base o conceito de hegemonia em Gramsci,
sobretudo da noção de contra-hegemonia, buscamos
analisar Mafalda, obra do cartunista argentino Quino, no
ensino de História, a partir do que chamamos de
"crítica Mafaldiana" aos elementos característicos da
sociedade burguesa. É esforço fundamental da pesquisa identificar em que medida
é possível, a partir da crítica "Mafaldiana", construir,
coletivamente, sentidos contra-hegemônicos na sala de aula.
Em termos metodológicos, foram selecionadas duas tiras
de Mafalda, presentes na obra Toda Mafalda, no intuito de
subsidiar as reflexões aqui esboçadas. A restrição de espaço impediu a análise
de mais tiras.
A hegemonia em
Gramsci
Se o conceito de hegemonia é um dos mais difíceis de definir
dentro do pensamento marxista, tendo sido interpretado como liderança e/ou como
domínio, será com Antonio Gramsci (1891-1937) que tal conceito alcançará seu
pleno desenvolvimento como conceito marxista.
Considerado por muitos estudiosos de Gramsci seu conceito
chave e sua maior contribuição à teoria marxista, a "hegemonia
gramsciana" era ainda um conceito pouco desenvolvido antes de sua prisão
pelo Estado fascista, em 1926. Da concepção pré-cárcere de hegemonia como uma
estratégia da classe operária e um sistema de alianças que o operariado deve
dar início com o objetivo de derrubar o Estado burguês, Gramsci passa a
compreender a hegemonia, já nas anotações da prisão (que dariam origem à sua
maior obra, os Quaderni), como o modo pelo qual a burguesia estabelece e
mantém sua dominação (hegemonia como projeto de classe). Analisando
historicamente a Revolução Francesa e o Risorgimento italiano,
Gramsci vai buscar entender como se construiu nestes países a chegada da burguesia
ao poder e, sobretudo, a manutenção deste poder, definindo o Estado, a partir
principalmente de Maquiavel, como força mais consentimento, coerção mais
consenso, sociedade política mais sociedade civil.
Gramsci amplia a teoria leninista do Estado, defendendo que
a hegemonia não se reduz à força econômica e militar, mas resulta de uma
batalha constante pela conquista do consenso no conjunto da sociedade (grupos
subalternos e potenciais aliados). Segundo o pensador sardo, a hegemonia
corresponde à liderança cultural e ideológica de uma classe sobre as demais,
pressupondo a capacidade de um bloco histórico (aliança de classes e frações de
classes, duradoura e ampla) dirigir moral e culturalmente, de forma sustentada,
toda a sociedade (Moraes, 2009, p.35). Portanto, é impossível pensar a
hegemonia sem pensar na luta de classes:
Falar em
hegemonia e contra-hegemonia é pensar no antagonismo entre as classes sociais
que, a partir de sua posição dominante ou subalterna no interior da sociedade e
do Estado de classes, exercem, sofrem e disputam permanentemente o poder.
(Dantas, 2008, p. 91)
Como categoria dinâmica, a hegemonia pressupõe negociações,
compromissos, renúncias por parte do grupo dirigente que se pretende
hegemônico. A base material da hegemonia é construída a partir de concessões e
reformas com as quais se mantém a liderança de uma classe (ou frações de
classe) e pelas quais outras classes (aliadas ou subordinadas) têm suas
reivindicações atendidas. Para Gramsci, a hegemonia não pode ser garantida sem
desconsiderar demandas mínimas dos "de baixo", sendo fundamental a
classe dirigente saber ceder, saber realizar sacrifícios no intuito de
preservar este instável equilíbrio de forças (Gramsci, 2002, vol. 3, p. 47).
Entretanto, o comunista italiano reitera que estas
concessões são sempre assimétricas, ou seja, que existe um grupo que dirige e
outros que são dirigidos, logo, a renúncia da classe hegemônica não pode nunca
permitir um desequilíbrio em sua relação com a classe subalterna, e mais que
isso, um desequilíbrio a nível estrutural (Ibidem, pp. 47-48).
Referência no estudo da hegemonia em Gramsci, Luciano Gruppi
defende que o marxista italiano apresenta este conceito em toda a sua
amplitude, ou seja, "como algo que opera não apenas sobre a estrutura
econômica e sobre a organização política da sociedade, mas também sobre o modo
de pensar, sobre as orientações ideológicas e inclusive sobre o modo de
conhecer." (Gruppi, 1978, p. 3)
Em outras palavras, Gruppi destaca que a hegemonia só é
possível se a liderança de uma classe se dá também no plano da superestrutura
(num viés marxista mais ortodoxo), se ela é uma liderança cultural e ideológica
que produz consenso e adesão à sua agenda. Não basta a ação coercitiva se o
objetivo é um domínio por completo, um domínio hegemônico.
Finalizando, é imprescindível pontuar que as formas da
hegemonia nem sempre são as mesmas, variando de acordo com a natureza das
forças que a exercem. (Moraes, op. cit., p. 36), e que a hegemonia nunca é
"completa", o poder de uma classe nunca está garantido completamente.
E reafirmando o que dissemos anteriormente: é impossível desvincular a questão
da luta de classes da discussão de hegemonia, algo bastante comum hoje em dia,
nos diversos processos de "domesticação" de Gramsci.
Mafalda e sua
turma
Criada em 1964 (inicialmente para uma propaganda de uma
marca de eletrodomésticos), Mafalda é a personagem de hq’s mais
popular da Argentina e uma das mais conhecidas do mundo. Sua curta trajetória
vai de 1964 a 1973, através de três publicações: Siete Días Ilustrados,
Primera Plana e El Mundo.
Os interlocutores de Mafalda também representam
personagens extremamente ricas, como por exemplo, Susanita, a
"burguesinha" fofoqueira, egoísta e briguenta cujo principal projeto
de vida é casar e ter filhos; Felipe, o sonhador de imaginação fértil,
vidrado em hq’s de aventuras, preguiçoso, tímido e que não gosta de ir à
escola; Manolito, o empresário-mirim da turma, ambicioso, bruto,
materialista, e que sonha ser dono de uma rede de supermercados! Completam a
turma o simpático Miguelito, um filósofo vaidoso ao extremo que
deseja o estrelato mais do que tudo; a pequena Libertad, uma miniatura
de Mafalda, filha de hippies e entusiasta das
revoluções; Guile, o irmão caçula de Mafalda, que freqüentemente
a surpreende com suas "transgressões"; e os pais de Mafalda,
típico casal de classe média latino-americana, passivos, limitados
intelectualmente e endividados.
A filósofa de seis anos, invocada, utópica e questionadora
das injustiças do mundo, libertária, politizada, fã de Beatles e avessa a
qualquer tipo de sopa, dialoga com diversas faixas etárias e classes sociais,
sendo bastante utilizada em livros didáticos, sejam eles de Gramática,
História, Geografia ou Filosofia.
A personagem de Quino constrói sua fala, em grande
parte das tiras, de duas formas: ou a partir do questionamento dos adultos
(geralmente seus pais), no intuito de dirimir as dúvidas que tiram seu sono, ou
na interação com as outras personagens, de mesma idade, buscando entender o mundo
que os cerca (por que existem guerras? por que a mãe trabalha em casa e o pai
não?) a partir dos referenciais de que dispõem. Obviamente Mafaldanão é um
quadrinho infantil, dialogando diretamente com um público majoritariamente de
adolescentes e adultos. Desta forma, a personagem de Quino oscila
muitas vezes entre a caracterização de uma criança típica, com tudo que lhe
possa ser atribuído (medo, ingenuidade, dependência dos pais), e uma criança
excepcionalmente lúcida, crítica e profunda conhecedora da realidade na qual
está inserida, que discute de igual pra igual com as pessoas mais velhas, na
maioria das vezes colocando-as em posição de "xeque-mate".
Após ser perguntado se é possível modificar algo através do
humor, Quino afirmou certa vez: "Não. Acho que não. Mas
ajuda. É aquele pequeno grão de areia com o qual contribuímos para que as
coisas mudem".Apesar da resposta categórica, é fato que a obra
de Quino contribuiu (e contribui) bastante para a crítica do senso
comum, para a politização através da arte e, sobretudo, para uma leitura das
décadas de 1960 e 1970 que, longe de ser neutra ou contemplativa, se posiciona
e questiona a todo o momento os fatos, os costumes, a partir da visão
que Quino tem do mundo, visão que, apesar de não romper com a sociedade
de classes, tampouco defender a superação do capital, em muitas circunstâncias
possibilita leituras contra-hegemônicas da realidade. Mais à frente
retornaremos a este ponto.
A
crítica "Mafaldiana" aos elementos característicos da
sociedade burguesa
As tiras acima,
"estrelando" Mafalda, sua família (pai, mãe e Guile,
seu irmão) e Miguelito (Tira 2), abordam dois elementos presentes na sociedade
burguesa e que representam condições imprescindíveis para que a hegemonia desta
classe seja garantida. Por enquanto, apenas comentaremos brevemente as tiras,
para em seguida analisarmos mais detidamente a contra-hegemonia, a relação
entre hegemonia e educação, a ideologia em Gramsci e a construção de sentidos
contra-hegemônicos na aula de História.
A Tira 1 tem como tema central a democracia e seu sentido
denotativo. Mafalda, ainda de dia, procura no dicionário o
significado da palavra "democracia". Ao ler que
significa "governo em que o povo exerce a soberania", Mafalda reage
gargalhando profundamente, uma vez que tem a clareza, a partir da concretude de
seu mundo de criança, que a democracia, em sua acepção original (grega) não
existe. Anoitece, Mafalda vai dormir, mas o sorriso não sai de
seu rosto, fato que deixa sua família sem entender absolutamente nada.
Esta tira permite ao professor de História estimular a
discussão sobre o que caracteriza a democracia burguesa (sufrágio universal,
liberdades políticas, império da lei, competição política), problematizando com
os alunos (i) se realmente vivemos uma democracia (nos termos em que foi
pensada pelos gregos); (ii) para quais grupos sociais a democracia de hoje
serve; (iii) se direitos políticos são a mesma coisa que direitos sociais,
civis; (iv) como é possível que um povo seja soberano, dentre outros
questionamentos.
A Tira 2 trata do individualismo, outro elemento
imprescindível do modelo burguês de sociedade. Brincando com a idéia
do self-made man, os milionários que prosperaram "sozinhos", e
com a idéia do "vencer na vida",Quino critica, com seu humor
refinado, o individualismo, extremamente valorizado e insistentemente
estimulado nas sociedades capitalistas.
Mafalda (encarnando a "criança típica"), diz
para Miguelito que estava lendo numa revista uma matéria
sobre self-made man. Seu amigo diz não saber o que é isso,
e Mafalda, que também não entendeu direito do que se trata, sem muita
certeza afirma que quando a pessoa nasce pobre e morre rica ela venceu na vida.
Trata-se de uma tira riquíssima, que o professor pode utilizar para explorar
contradições da sociedade burguesa, como por exemplo, a veracidade da idéia
do self-made man, pois é impossível obter lucro, enriquecer, sem a
"ajuda" da exploração econômica dos trabalhadores, sem a mais-valia,
sem a transformação do trabalhador em mercadoria. Os
diversos "Jobs", "Gates", "Rockfellers", "Rothschilds", "Eikes", "Justus",
idolatrados pela mídia, pelas editoras de livros sobre "Como ser um
vencedor?", pelo senso comum, não construíram impérios sozinhos, tampouco
com o esforço de seu próprio trabalho.
A expressão "vencer na vida" também pode ser
explorada, uma vez que a existência de vencedores pressupõe a existência de
"perdedores", denotando que na sociedade burguesa, a competição não
apenas é estimulada como "premiada". É devastador o efeito da idéia
de competição na sala de aula, como mostram as reações diante das notas, o
esforço para ser o número um da classe, a decepção com o "fracasso".
A frase "se você não estudar não será ninguém na
vida" é, infelizmente, ainda bastante comum no ambiente escolar, por
parte dos alunos, orientadores educacionais, professores. Provocar tais
reflexões é muito importante para revelar as contradições da sociedade do
"você vale o quanto ganha", onde os atalhos são mais estimulados que
as travessias, o "empreendedorismo" mais evidenciado que o trabalho,
o singular mais valorizado que o plural.
Contra-hegemonia no
ensino de História e a relação hegemonia/educação
O conceito de contra-hegemonia não foi formulado por
Gramsci. Corresponde a uma interpretação do conceito de hegemonia de Gramsci a
partir de uma perspectiva crítica, atualizada e, sobretudo estratégica, por
parte de inúmeros marxistas (os brasileiros Leandro Konder e Carlos Nelson
Coutinho, por exemplo), objetivando traduzir/demarcar, em termos de luta
ideológica e material, um projeto antagônico de classe, em relação à hegemonia
burguesa. O termo, que se consolidou pelo uso, significa que a luta é contra
uma hegemonia estabelecida, uma luta que objetiva a construção de uma nova
hegemonia, e que por isso, corresponde a um projeto de classe distinto.
Para Eduardo Granja Coutinho,
Parafraseando Marx, pode-se dizer que toda hegemonia traz em si o germe da contra-hegemonia. Há, na verdade, uma unidade dialética entre ambas, uma se definindo pela outra. Isto porque a hegemonia não é algo estático, uma ideologia pronta e acabada. Uma hegemonia viva é um processo. Um processo de luta pela cultura. (Coutinho, 2008, p. 77)
E recuperando Raymond Williams, a partir de Chauí, frisa que
a hegemonia "deve ser continuamente renovada, recriada, defendida e
modificada e é, continuamente, resistida, limitada, alterada, desafiada por
pressões que não são suas". (Ibidem)
Conforme discutido na parte "A hegemonia em
Gramsci", a hegemonia corresponde à liderança de uma classe e suas frações
sobre as demais; corresponde a uma direção política, cultural que é exercida
por uma classe em aliança ou não com outras. Logo, um movimento
contra-hegemônico sempre compreenderá a luta de classes, significando um
projeto distinto de sociedade, como por exemplo, o comunismo em relação ao
capitalismo.
É fundamental pontuar que ser crítico não significa
necessariamente ser contra-hegemônico. Posições críticas a valores dominantes
não necessariamente conformam uma contra-hegemonia. O Romantismo estabeleceu
críticas importantes ao capitalismo, mas nem por isso foi contra-hegemônico,
pois não propôs a superação do capital, não rompeu com o modelo burguês de
sociedade, não forjou outra hegemonia.
Conforme dito anteriormente, apesar de Quino não
ser marxista, de não defender o fim do capitalismo, ou o fim das classes, é
possível que o professor de História (que também não precisa ser marxista para
tal) a partir das críticas incisivas de Mafalda, suscite/construa sentidos
contra-hegemônicos, questionando, a partir dela, os diversos elementos
característicos da sociedade burguesa.
Como obra de arte, Mafalda explicita as
contradições do momento histórico em que foi produzida, mesmo que seu autor não
tenha tido a intenção disto ao desenhá-la. Ciente disto, é possível se
apropriar da obra de Quinoem sala de aula, não apenas para
conhecer/compreender melhor os anos 1960 e 1970 na América Latina, mas também
para provocar reflexões acerca das rupturas e sobretudo permanências oriundas
deste período histórico, problematizando a sociedade de classes, o capital, o
imperialismo, o modelo burguês de sociedade (expondo suas contradições), e
costurando vieses contra-hegemônicos, ou seja, discutindo caminhos,
possibilidades de construção de outra sociedade, de outro mundo (perspectiva
contra-hegemônica).
Em sua leitura da hegemonia, Gramsci defendia a existência
dois tipos de embate político: a guerra de posição (conquista da
hegemonia civil) e a guerra de movimento (revolução permanente), estratégias
específicas para condições da luta de classes específicas. A primeira se
daria em países onde a sociedade civil estivesse estruturada (sociedades de
"Estado ampliado" – o Brasil de hoje, por exemplo) e se constituiria
numa "guerra de trincheiras", com recuos e avanços, através dos
aparelhos privados de hegemonia (escola, partido, meios de comunicação,
sindicato, Igreja), buscando conquistar posições de direção e governo dentro da
sociedade. Já a segunda seria a forma possível nos países de frágil sociedade
civil (sociedades de "Estado restrito" – a Rússia pré-Revolução de
Outubro, por exemplo), correspondendo a uma irrupção rápida e violenta contra o
Estado.
Os aparelhos privados de hegemonia não são monopólio da
classe dominante que exerce a hegemonia: as classes dominadas que também
desejam conquistá-la, segundo Gramsci, ocupam espaços dentro do aparelho que
permitem a construção de "trincheiras" e logo, de uma guerra de
posição (Moraes, op. cit., p. 40).
Sem dúvida, a escola representa um dos mais poderosos
aparelhos privados de hegemonia. Compreendendo a guerra de posição como
movimento de elaboração de contra-hegemonia, é possível entender que uma
formação crítica, que promova a desalienação e a autonomia dos educandos,
apontando para outros caminhos, permite conquistar posições importantes nos
embates contra a hegemonia dominante (guerra de posição), e no limite,
fortalecer a contra-hegemonia.
A crítica "Mafaldiana", no ensino de História,
possibilita inúmeros pontos de entrada para a análise crítica da sociedade
burguesa, expondo suas contradições. Uma aula de História sintonizada com tal
percepção pode construir, coletivamente, sentidos contra-hegemônicos em relação
à hegemonia burguesa. Obviamente não se defende aqui que o professor sozinho
seja capaz de construir uma contra-hegemonia, processo complexo e dinâmico. A
perspectiva é sempre coletiva, compreendendo os quadrinhos como ponto de
partida e nunca de chegada (tampouco creditando a eles a capacidade de
sozinhos, esgotarem as discussões e conteúdos da disciplina); entendendo o
espaço da sala de aula como espaço da contradição, da heterogeneidade, como
espaço de disputas onde alternativas ao modelo burguês de sociedade podem ser
pensadas, debatidas, forjadas.
Outra contribuição fundamental de Gramsci para nossas
pretensões neste trabalho é a compreensão de que hegemonia e educação mantêm
uma relação dialética entre si. Para o pensador sardo, toda relação pedagógica
é hegemônica, assim como qualquer relação hegemônica é necessariamente
pedagógica (Jesus, 1989, pp. 122-123). A educação é imprescindível para as
relações de direção (consenso) e dominação (coerção) de uma classe (hegemonia),
da mesma forma que uma classe só é hegemônica de fato, quando sua liderança
ideológico/cultural é consensual.
Em outras palavras, a chave para se entender a relação
hegemonia/educação está no consenso (ideologias). Toda pedagogia compreende uma
dimensão hegemônica (ou contra-hegemônica), pois constrói/refuta/legitima
consensos. Da mesma forma, toda hegemonia (e contra-hegemonia) é uma ação
pedagógica, pois não basta a força para que uma classe se torne hegemônica e/ou
mantenha sua hegemonia – o vetor-consenso da dominação de classe é
indispensável, ou seja, "educar" as concepções de mundo de acordo com
seus interesses.
O filósofo italiano refuta a noção de ideologia como
falseamento da realidade, compreendendo-a como "(...) uma concepção
de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade
econômica, em todas as manifestações de vida individuais e
coletivas." (Gramsci, 1989, p. 16) Para Gramsci, a ideologia não
reflete simplesmente o interesse da classe econômica, não é algo determinado
pela estrutura econômica ou pela organização da sociedade, mas um espaço de luta
(Bottomore, loc. cit.), uma representação da realidade própria de um grupo
social (Liguori, 2007, p. 94).
Uma vez que é impossível pensar a hegemonia e a
contra-hegemonia "por fora" das classes, é imperioso frisar que o
encaminhamento de ambas depende de convicções e motivações ideológicas (Konder,
2002, p. 195).
Com Gramsci, entendemos que os aparelhos privados de
hegemonia são os espaços responsáveis pela elaboração e/ou difusão das
ideologias (Coutinho, 2007, p. 127), sendo primordiais para a conquista do
poder de Estado nas sociedades complexas do capitalismo recente (Ibidem, p.
135).
Em síntese, ao defendermos a possibilidade do professor de
História construir sentidos contra-hegemônicos na sala de aula, entendemos a
escola como um destacado aparelho privado de hegemonia; a contra-hegemonia como
um projeto de classe; corroboramos a idéia do vínculo dialético entre as
relações hegemônicas e pedagógicas; afirmamos que uma análise dialética das
concepções de mundo tem que começar com a distinção essencial entre as
concepções que visam manter a ordem estabelecida e aquelas que visam
transformá-la (Löwy, 2006, p. 19); defendemos que o processo de
ensinar-aprender é sempre coletivo, dialógico, contraditório, e que não pode
prescindir da crítica, da análise do real, da transformação de idéias,
princípios, em práticas concretas, e finalmente, não pode jamais perder de
vista o projeto de emancipação humana.
A baixinha Mafalda pensa e age a partir "de
baixo", em seu duplo (múltiplos?) sentido (s). Defender outra educação
possível, outra escola, é defender outra sociedade, e a
crítica Mafaldiana sobre os problemas da sociedade
contemporânea, onde todos são iguais, mas alguns são mais iguais que os
outros, sem dúvida pode ajudar bastante o professor que "enxerga" o
mundo a partir de uma perspectiva contra-hegemônica.
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